Em cima de uma coluna de madeira que delimita uma área de proteção para seu ninho, uma coruja-buraqueira boceja enquanto observa veranistas passando pela areia das dunas para se instalar em frente ao mar. Perto dela, dois quero-queros caminham em alerta, de olho na movimentação.
As dunas de Capão da Canoa, no Litoral Norte, e seus habitantes fazem a divisão entre a beira-mar e uma cidade em crescente urbanização. Prédios, ruas asfaltadas e uma população em crescimento convivem com os animais e a vegetação de um ecossistema que passa por intervenções diariamente.
Atitudes como atravessar o meio da duna a pé, estacionar o carro nas elevações de areia ou deixar o carvão do churrasco da praia perto da vegetação são extremamente prejudiciais aos vizinhos da fauna e flora presentes nos cômoros, principalmente para aqueles que só conseguem sobreviver nessas áreas e que estão em risco de extinção. Quem faz esse alerta é Maurício Tavares, 43 anos, biólogo do Centro de Estudos Costeiros, Limnológicos e Marinhos (Ceclimar), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
— Ao longo do processo de ocupação do ser humano, as dunas foram sendo degradadas. Onde pisoteia, vira um trilho, acaba com a vegetação e, consequentemente, com a duna — explica.
O cômoro de areia funciona como uma esponja que absorve a ressaca do mar e vai se regenerando com os sedimentos carregados pelo vento. As vegetações nativas garantem a fixação — por isso, não é recomendado inserir outras espécies na região, para não afetar o sistema.
Segundo Tavares, até o tipo das passarelas para pedestres pode prejudicar a vegetação e a duna. O biólogo avalia que a estrutura que menos impacta a natureza é a de formato mais elevado, que permite a circulação embaixo por não encostar diretamente na areia.
—Não vai matar a vegetação dar uma caminhada rápida na duna, mas com milhares de pessoas, todos os dias, precisa de uma passarela. Outra coisa que estraga muito é o veículo que passa com a roda por cima dos animais e das tocas, amassa a vegetação e destrói algo que demorou para se regenerar — esclarece o biólogo.
Em festas como a de Réveillon — que recentemente reuniu milhares de pessoas na beira da praia de Capão da Canoa —, a preocupação de ambientalistas e defensores da natureza aumenta pela presença maior de pessoas em cima das dunas.
— Perdemos um filhote de piru-piru em razão disso — lamenta o estudante de Biologia marinha Lourenço Fagundes, 26 anos, que havia ajudado a construir uma área de isolamento para tentar preservar os ninhos da ave de bico vermelho, que também é característica do Litoral.
A ideia de buscar soluções para conservar a vida nas dunas é um projeto do estudante de medicina veterinária Tiago Dominguez, 29 anos. Tudo começou há três anos, quando ele se frustrou ao descobrir que os ovos de um piru-piru haviam sumido das dunas.
— Quando criança, a gente usava todo esse espaço para brincar. Depois de adulto, eu comecei a perceber muitas espécies correndo risco e que não conseguiam concluir a sua reprodução — comenta o morador de Capão da Canoa, que passou a utilizar as redes sociais para publicar mensagens de conscientização e a instalar cercas de proteção para alertar a população sobre as áreas com ninhos.
O impacto do risco de extinção
Não sendo avistado tão seguidamente nas dunas por fazer suas tocas dentro da areia, o simpático roedor tuco-tuco é um dos animais que desperta grande preocupação dos biólogos porque está ameaçado de extinção e só sobrevive no litoral gaúcho — o que o classifica como uma espécie endêmica.
— Ele só vive na duna frontal, por isso corre risco maior — salienta Tavares.
Outra espécie que também pode desaparecer é a lagartixa das dunas, presente ainda em Santa Catarina e no norte do Uruguai. Assim como o tuco-tuco, o animal tem uma coloração semelhante à da areia, que o ajuda na estratégia de sobrevivência.
Conforme Tavares, a descontinuidade de uma espécie desequilibra o ecossistema, podendo causar impactos até na vida humana. O sumiço do tuco-tuco, que é presa da coruja-buraqueira, pode implicar, por exemplo, em uma alteração na cadeia alimentar e em uma interferência na população de outros seres que dependem do mesmo ciclo.
O reflexo disso pode chegar até no campo da saúde. De acordo com a bióloga do município de Capão da Canoa, Eliziane Mello, a dieta das corujas, constituída por mariposas, besouros, grilos, aranhas, roedores, morcegos e répteis, as torna grandes aliadas no controle da proliferação de vetores, ajudando a reduzir o surgimento de doenças humanas.
Visitante indesejado: o lixo
Outro problema que afeta as dunas e é resultado da falta de consciência da população é o acúmulo de lixo dos usuários da praia. Em poucos minutos observando os cômoros de Capão da Canoa, a reportagem de GZH encontrou embalagens de plástico, carvão de churrasqueira e bitucas de cigarro.
Realizando mutirões de limpeza com amigos, o estudante de Medicina Veterinária Tiago conta que precisa de carrinhos de mão para comportar todos os resíduos encontrados. Ele salienta que pequenas mudanças de atitude já poderiam fazer uma grande diferença.
— O pessoal pode se divertir e curtir a praia com a sua família, ajudando a preservar e apreciar a natureza, e levando o seu lixo para casa — ressalta.
Já seu amigo Lourenço, estudante de Biologia Marinha, complementa:
— É muito importante que nós, como seres humanos, nos vejamos como parte do ecossistema e não como um mundo à parte dele. Se a gente quer um mundo bom para as futuras gerações, precisamos que esses animais convivam com a gente — sustenta.
GZH entrou em contato com a prefeitura de Capão da Canoa, questionando se há ações previstas para preservação da vida nas dunas ou para ampliar a limpeza na região, mas até o fechamento desta reportagem, não teve retorno.
Os animais que vivem nas dunas
Coruja-buraqueira: distribuída em todas as Américas, é a coruja mais abundante no Rio Grande do Sul e no Brasil. Consegue ocupar a duna e adapta sua coloração de acordo com o tom do solo. Sua dieta é bem variada ao longo do ano. Em locais urbanizados, se alimenta de insetos atraídos pela iluminação. Também fazem parte de suas presas os tucos-tucos e morcegos.
Quero-quero: conhecida dos gaúchos, a ave símbolo do Rio Grande do Sul é facilmente encontrada nas praias. Faz o ninho no chão e tem uma estratégia de emitir alertas sonoros para afastar ameaças e “enganar” o predador para que o siga e se afaste dos filhotes.
Piru-piru: ave costeira bem comum da praia. Tem um bico vermelho comprido que chama a atenção e tem formato de alicate para abrir conchas de mariscos e moluscos. Diferente da coruja, não emite alertas a quem se aproxima e costuma ser mais arisco.
Tuco-tuco: o roedor tem esse nome porque sua vocalização lembra um som de “toque-toque”. É considerada uma espécie endêmica, porque só é encontrada nas dunas frontais do Rio Grande do Sul. Costuma viver dentro da toca por ser presa de outros animais, como a coruja-buraqueira. Seus túneis podem chegar de 30 a 70 metros de comprimento. Herbívoro, alimenta-se de vegetação nativa das dunas, como a erva-capitão, que tem folhas amarelas e é da família da cenoura.
Lagartixa da duna: por também ser uma presa fácil, fica escondida na areia como estratégia de sobrevivência. Come espécies que degradam carcaças de animais e insetos.
Maria-farinha ou caranguejo-fantasma: apesar de ser localizada mais na beira da praia, também está presente nas dunas. Semelhante a um pequeno caranguejo, faz tocas em pequenos buracos na areia e é extremamente rápida para buscar alimentos e retornar para seu refúgio. Alimenta-se de restos de carcaças de animais diversos, desde peixes a mamíferos marinhos, e também invertebrados, como os moçambiques.