O número de pessoas que procuraram ajuda da Defensoria Pública gaúcha para solicitar curatelas à justiça vem aumentando no Rio Grande do Sul. O processo serve para que pessoas incapacitadas de administrar seus bens, seja pela idade, ou por limitações físicas e mentais, possam contar com alguém para assumir a gestão legalmente.
Um levantamento obtido com exclusividade por GZH mostra que, em quatro anos, o número de processos deste tipo administrados pela defensoria aumentou em mais de dez vezes. Em 2018, foram 776. Já em 2022, foram 8.457, um crescimento de 989%. Em 2020, houve um incremento de 2,15% em relação ao mesmo período do ano anterior. Já em 2021, o acréscimo foi de 86% (veja dados abaixo).
Em 2023, dados parciais apontam para uma tendência de superar a marca de atendimentos de 2022. Até o mês de agosto, foram feitas 5.573 buscas. Segundo a defensora Mariana Fenalti, coordenadora do núcleo da pessoa idosa na Defensoria Pública do Rio Grande do Sul, o envelhecimento da população alavancou o aumento da procura, já que, em muitos casos, as pessoas que necessitam de apoio já possuem idade elevada. O número de consultas feitas para solicitar a curatela especificamente de pessoas idosas cresceu ainda mais do que os dados gerais: foram 797 casos, mais do que duzentas vezes superior aos 39 registrados em 2018.
— Isso vem na mesma linha dos dados do IBGE, no sentido de que a população está se tornando cada vez mais idosa e, consequentemente, vamos ter também um aumento de ações decorrentes do envelhecimento — aponta.
Questões econômicas
No entanto, casos envolvendo idosos representam apenas 9% do total de atendimentos por curatela, conforme números de 2022. Por isso, Fenalti destaca que há também um fator econômico por trás da grande demanda. A Defensoria Pública costuma atender famílias que recebem até três salários mínimos mensais.
— Como nos últimos anos a situação financeira da população se tornou mais dificultosa, diversas famílias que, antes, não se enquadravam nos critérios de atendimento da Defensoria Pública hoje se enquadram. Por outro lado, o aumento também pode decorrer do fato de as pessoas estarem tendo mais acesso à Justiça. A informação está alcançando mais pessoas, que estão tendo mais conhecimento de que podem buscar o órgão para ajuizar essas ações — complementa.
Apesar disso, a quantidade de processos que vão ao Poder Judiciário é inferior ao número de famílias que buscam atendimento. Dados do Tribunal de Justiça apontam para uma média de 3.295 ajuizamentos nos últimos três anos, incluindo aí ações movidas por advogados e pelo Ministério Público. Isso é explicado pelo fato de que muitas pessoas que procuram o órgão acabam não levando o caso adiante, seja por desistência, ou por avaliação do defensor de que não haveria a necessidade de ingressar com uma ação.
Como funciona uma curatela?
As curatelas costumam ser solicitadas pelos próprios familiares, que podem acionar um advogado ou a Defensoria para entrar com uma ação na justiça. Normalmente, os pedidos são feitos quando se identifica que um parente não possui mais autonomia para lidar com seus gastos pessoais. Essa modalidade se enquadra apenas para pessoas maiores de idade, já que para a guarda de crianças e adolescentes o processo é chamado de tutela. Nos casos em que não há familiares demonstrando interesse, o Ministério Público é o responsável por entrar na Justiça. O órgão também pode ser o responsável legal na ausência de parentes.
— Quando o MP é acionado, ele primeiro busca saber se existem familiares dessa pessoa e se esses familiares têm condições ou interesse de adotar essas medidas. Percebendo que que os familiares não vão se movimentar ou que não existem familiares, tomamos iniciativa de postular a interdição dessa pessoa com a nomeação de um chamado curador dativo, que é um curador profissional, de confiança do juiz — afirma o promotor de Justiça Tiago Conceição, coordenador do Centro de Apoio Operacional de Proteção do Patrimônio Público e da Moralidade Administrativa, Cível, Família e Sucessões.
Caso a necessidade de intervenção ocorra por motivos de saúde, é preciso apresentar à Justiça um laudo médico. Ao longo do processo de análise, a pessoa é submetida a uma perícia médica e a uma entrevista, se ela apresentar condições. Também é possível solicitar a curatela em casos de dificuldades financeiras, como superendividamento. Nesse cenário, é comum que a própria pessoa busque a sua curatela.
Em ambos os casos, se um familiar deseja ser o responsável, é necessário que se comprove o grau de parentesco. O juiz irá definir quem será o curador, através de uma lista de prioridades. Se aquele cenário não se enquadra, passa a valer o critério seguinte:
- Cônjuge ou companheiro;
- Parentes ou tutores;
- Representantes da entidade em que se encontra abrigado o interditando;
- Curadores indicados pelo Ministério Público;
Quando não identificado quem tem condições de gerenciar a vida melhor na família, é nomeado um curador dativo.
— Normalmente o Poder Judiciário entende que podem ser até os sobrinhos. Existem casos em que é flexibilizado para primos e para parentes mais distantes, porém, isso precisa ser objeto de uma análise criteriosa — explica o advogado Cristiano Lisboa Martins, especialista em direito do idoso e membro do Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa Idosa.
Uma vez que o curador é escolhido judicialmente, ele passa a ter acesso às contas bancárias do curatelado. Cabe ao protetor decidir onde ele irá morar. Segundo Martins, em casos de pessoas idosas, é muito comum que a pessoa responsável opte por um lar geriátrico, embora permaneça com suas obrigações. Uma delas é a prestação de contas à Justiça, o que deve ser feito mensalmente.
— O curador precisa prestar contas de tudo, de cada compra que fez no supermercado, da farmácia, da conta de luz e da instituição de longa permanência, por exemplo, além de manter uma contabilidade atualizada — complementa.
"As pessoas não pensam na velhice"
Segundo o TJRS, que possui uma vara específica de curatelas em Porto Alegre, o tempo médio para ajuizamento das ações é de, em média, 24 horas. No entanto, em alguns casos, a espera pode durar semanas. A professora aposentada Nelda Griesang, 87 anos, vivia sob os cuidados do filho, 60 anos, que morreu em julho. Os dois moravam em um apartamento no bairro São Geraldo, na zona norte de Porto Alegre. A idosa é portadora de demência senil, quando a pessoa, ao envelhecer, perde gradativamente suas funções intelectuais.
O curador precisa prestar contas de tudo, de cada compra que fez no supermercado, da farmácia, da conta de luz e da instituição de longa permanência, por exemplo, além de manter uma contabilidade atualizada.
CRISTIANO LISBOA MARTINS
Advogado especialista em direito do idoso e membro do Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa Idosa
Desde então, nenhum familiar se apresentou para cuidar de Nelda, e ela passou a viver sozinha em seu apartamento. A situação mobilizou a vizinhança, que passou a cuidar da sua alimentação. Uma das vizinhas, a nutricionista Patrícia Lorenci, 49 anos, foi além: buscou autoridades e pesquisou formas de encontrar um responsável legal para cuidar de Nelda.
— Foi uma questão de humanidade. Já conhecia Nelda e o filho dela. Percebi que as vizinhas estavam fazendo apenas o básico. Então, eu comecei a me questionar: ela não precisa tomar banho? Higienizar o apartamento? Ela precisa de atenção 24 horas, e quem estava dando isso éramos nós. A gente que custeava o cuidado, as contas dela estavam bloqueadas — relata.
Enquanto cuidava de sua vizinha, Patrícia iniciou um processo para buscar familiares que pudessem assumir a curatela. Primeiro, encontrou uma prima que não tinha condições de assumir os cuidados. Depois, localizou nas redes sociais Adelaide Griessang, uma parente distante, moradora de Porto Alegre, e que, mesmo sem conhecer Nelda, se disponibilizou para gerir a vida da idosa.
Adelaide preferiu não dar entrevista, mas confirmou que aceitou o convite de Patrícia, e passou também a prestar auxílio enquanto a ação tramitava. No início de agosto, Adelaide e seu advogado entraram com uma ação na justiça solicitando a curatela. Em meio a esse período, a idosa foi levada a um hospital em decorrência de uma parada cardíaca. Ela recebia cuidados da instituição através de um convênio do IPE Saúde.
Juntar os documentos necessários foi o grande desafio para poder ingressar com a ação. Durante cerca de três semanas, a interessada buscou provas que comprovassem o parentesco Foram coletadas seis certidões de óbito, mas não foi possível chegar ao ponto comum.
— Identificamos uma ligação entre dois irmãos que vieram da Alemanha. Juntamos documentos, relatos de parentes, mas não conseguimos comprovar o parentesco oficialmente, o que acarretou em uma demora no processo de curatela — explica o advogado de Adelaide, Max Daniel Winter.
Quase 10 dias depois, a Justiça publicou uma decisão negando a curatela de Adelaide. A defesa pressionou o MP para que entrasse com uma representação, recomendando a curatela a prima distante. O ofício foi entregue ao judiciário no final do mês.
— Quando o MP assume a curatela, costuma ser algo formal. Não há visitas e acompanhamento pessoal. Geralmente, quando o órgão envia a representação, a Justiça costuma aceitar — acrescenta Max.
No dia 1º de setembro, a Justiça autorizou a curatela, e Adelaide passou a ser a responsável legal de Nelda, que se encontra em um lar geriátrico. Ao todo, Nelda ficou formalmente desassistida por dois meses. Patrícia, responsável pela mobilização que levou ao processo, diz que imaginava ser mais simples encontrar uma solução. Ela orienta que as pessoas passem a se informar e a se preocupar com isso desde cedo.
— As pessoas têm que procurar ter conhecimento sobre essas coisas. As pessoas não pensam na morte, na velhice, e isso é muito importante. A gente está vendo que uma pessoa que tem uma aposentadoria, uma professora do Estado, que tem condição de se internar numa clínica, mas apresenta toda essa dificuldade — conclui.