Na BR-153, próximo de Caçapava do Sul, na região da Campanha, entre caminhões enormes e carros em alta velocidade, uma figura destoante circulava com uma tranquilidade impressionante, levando em conta o seu estado quase indefeso neste cenário tão agressivo das rodovias. Sentado em um triciclo, Andres Salinas, de 41 anos, pedalava nesta sexta-feira (25) com confiança e, também, com a leveza de quem não tem pressa para chegar ao seu destino.
Ele deixou o seu país-natal, Chile, no começo de julho, levando o seu triciclo em um ônibus, rumo a Mendoza, na Argentina. Por lá, subiu em seu meio de transporte próprio no dia 14 do mês passado e começou a pedalar. E é o que ele vem fazendo há mais de 40 dias. Depois de passar pelo Uruguai, chegou ao Brasil na semana passada e, agora, o objetivo do viajante é ir até Florianópolis, em Santa Catarina, onde mora seu irmão Sady, a quem pretende encontrar.
Antes disso, porém, ele quer conhecer mais o Rio Grande do Sul — passou alguns dias em Bagé e, no começo da próxima semana, deve chegar à Capital, onde espera achar alguém para soldar o seu triciclo, que já apresenta alguns problemas e precisou ser remendado com arames e pedaços de madeira. Isso, porém, não abala o viajante, que conversa com a reportagem de GZH o tempo inteiro com sorriso no rosto. Ele conta que passou por momentos difíceis na pandemia, confinado e sem poder fazer o que mais ama: viajar pelo mundo, possibilidade que agora lhe foi devolvida.
— Eu sempre quis conhecer o Brasil e essa está sendo a minha primeira vez aqui. Fiquei uns dias em Bagé, ia parar em Caçapava do Sul, mas perdi a entrada. Agora, estou indo para Porto Alegre. É grande lá, né? — questiona.
As dúvidas e confusões do intrépido viajante se dão, porque, desde a metade de sua jornada, está tendo dificuldades para se localizar, uma vez que seu celular acabou se espatifando na estrada e foi atropelado por um carro. Com o dispositivo, ele consultava o Google Maps para se guiar e, também, conseguia se comunicar com os familiares — agora, está sem mapa e sem contato.
Ele só consegue mandar sinal de vida para seus parentes quando chega em alguma cidade e encontra uma lan house, onde se conecta ao Facebook e manda mensagens dizendo onde e como está. Na estrada, Salinas se guia pelas placas de trânsito e perguntando a pessoas que encontra para que lado deve seguir.
Assim, ele vai juntando pelo caminho informações e amigos — estes, inclusive, lhe presenteiam com itens importantes, como alimentos e peças para o seu triciclo. Em um destes encontros de estrada, por exemplo, ganhou três pneus novinhos e que serão usados em breve, visto que os originais já estão carecas. No total, desde Mendoza, ele pedalou mais de 2 mil quilômetros. Sempre que pode, ele tenta fazer cerca de 70 quilômetros por dia de viagem.
— Mas não viajo de noite. Os caminhões andam ainda mais rápido e, na Argentina, um passou muito perto — explica.
Sucata
O veículo de Salinas é bem peculiar, cheio de objetos coloridos e com uma antena em que estão penduradas uma bandeirinha que ganhou na estrada de presente de um amigo argentino — segundo o viajante, é o símbolo dos povos mais pobres do país vizinho —, além de um pequeno tecido laranja, para alertar os caminhões sobre a sua discreta presença na estrada. O mais interessante, porém, é que o triciclo é quase todo reciclado, conforme o orgulhoso proprietário.
— Trabalhei nele bastante tempo. E é basicamente feito de sucata de bicicletas antigas. Eu fiz ele com o meu pai, Edgardo, enquanto a gente tomava uma cerveja e outra (risos) — detalha.
O veículo, durante a viagem, ainda foi recebendo melhorias, como uma carenagem feita de plástico, mesclando uma bacia e um balde, que foi colocada na parte frontal do triciclo. Com isso, ele tem mais estabilidade contra o vento e a trajetória se torna mais segura. Além disso, o equipamento de viagem do ciclista conta com outras adaptações, como garrafas pet para guardar seus itens pessoais e, também, acumular água para higiene pessoal:
— Principalmente, para lavar as cuecas, que é o que mais fede (risos).
Com um número limitado de roupas na bagagem, para não pesar no trajeto, sempre que pode, ele tenta lavar as peças em lavanderias, mas a grana é curta. O banho, também, ocorre com espaçamento de tempo grande — cerca de uma vez por semana. Quando encontra um rio, mergulha e se lava. E por falar em dinheiro, Salinas tinha um pouco guardado para fazer a viagem, mas, conforme os recursos vão findando, ele recorre a ajudas do pai e da mãe para se manter, mas depende de encontrar uma agência específica de transferência internacional.
— Não passo fome e nem frio — garante.
A sua dieta é, na maioria das vezes, formada por ovos, farinha, achocolatado e muito açúcar, para repor as energias, apesar disso, perdeu mais ou menos 15 quilos na viagem. Mesmo pedalando muito e com um tornozelo um pouco inchado, garante que a sua viagem é confortável, com um assento em que consegue se recostar e pedala com os pés para cima. Na parte de trás do veículo, sacos carregando o lixo que produz:
— Faço questão de levar comigo e jogar nas lixeiras.
Terceira viagem
Há nove anos, Salinas teve o primeiro impulso de largar tudo e ir viver uma aventura fora. Assim, vendeu a sua casa em Santiago, no Chile, e partiu para conhecer a Alemanha. Por lá, teve sua primeira jornada em cima de uma bicicleta, pedalando por diversos países da Europa, que considera um local excelente para viver a experiência, por ser tudo conectado e adaptado para ciclistas.
Regressou ao Chile e, em seguida, partiu para um novo desafio sobre rodas — desta vez, com três. Percorreu parte da América do Sul, indo até a Patagônia. Mesmo tomado pelo espírito da aventura, depois de sua segunda viagem, sossegou um pouco. Começou a trabalhar, depois foi pai — a Nina, de cinco anos, que não vive com Salinas, mas, sim, com a mãe, em Bariloche — e, mais recentemente, foi barrado pela pandemia.
A casa da filha, por sinal, é um dos destinos pretendidos pelo valente ciclista, em uma eventual extensão desta sua atual empreitada. Para a visita ao seu irmão, deixou para trás o emprego como estoquista de supermercado e não se arrepende, uma vez que não tem medo das estradas.
— Elas têm mais medo de mim do que eu delas — brinca.
O futuro, Salinas não sabe. Após encontrar Sady em Florianópolis, com quem pretende se comunicar previamente e descobrir o endereço correto quando parar em Porto Alegre, o viajante vai avaliar o local e, se considerar bonito de verdade, vai comunicar a sua mãe, que já tem ideia de deixar o Chile. Ao ser questionado pela reportagem sobre o que a dona Raquel Castro lhe disse quando decidiu viajar nas condições em que ele se encontra, o homem esguio e de cabelos desgrenhados pelo vento forte do Sul soltou:
— Ela disse para eu me cuidar, não fazer loucuras, assim como toda a mãe diz.
Logo em seguida, o desbravador subiu em seu triciclo e seguiu viagem, com um sorriso no rosto e fazendo sinal de positivo para todos que passavam e davam uma buzinada. Sem pressa e com desapego por bens materiais, parecia ter encontrado a felicidade em cima das três rodas.