Pode ser discutido e votado, nesta quarta-feira (14), na Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher, o projeto de lei (PL) 478/2007 que cria o Estatuto do Nascituro. O texto é discutido há 15 anos na Câmara dos Deputados e costuma voltar à pauta a pedido de parlamentares conservadores. A medida pretende proibir o aborto no Brasil, inclusive em situações consideradas legais atualmente: em gestações causadas por estupro, casos de anencefalia ou quando há risco de morte da mulher.
O projeto foi colocado em pauta no dia 7 de dezembro na comissão. A votação, porém, foi adiada devido a um pedido de vista apresentado pelos deputados Sâmia Bomfim (Psol-SP), Vivi Reis (Psol-PA), Erika Kokay (PT-DF) e Pastor Eurico (PL-PE). O pastor faz parte da bancada conservadora, mas pediu mais tempo para avaliação. Parlamentares conservadores defendem que o feto, antes mesmo de nascer, tem direito “à vida, à saúde, ao desenvolvimento e à integridade física”. Já os deputados opositores reforçam que a proposta viola a Constituição Federal, que garante direitos reprodutivos às mulheres. Eles pretendem se articular para seguir obstruindo o texto na comissão.
Direitos desde a concepção
Quem defende a proposta alega que é preciso garantir o direito desde a concepção de uma nova vida, por isso criar direitos para o nascituro. No parecer, o relator da matéria, o deputado Emanuel Pinheiro Neto (MDB-MT), diz que o nascituro é o "indivíduo humano concebido, mas ainda não nascido". Ou seja, nascituro seria um sinônimo para feto. Ainda conforme o texto, o feto resultante de violência sexual terá os mesmos direitos dos demais nascituros.
Em outro trecho, o relator argumenta por em favor de mais direitos: "se há concepção, haverá vida, desde que se permita ocorrer a sucessão natural dos eventos. Mesmo em casos como a anencefalia, há o normal desenvolvimento físico do feto: formam-se seus olhos; nariz; ouvidos; boca; mãos, enfim o que lhe permite sentir, e também braços; pernas; pés; pulmões; veias; sangue que corre, o coração".
Hoje, o Código Civil brasileiro prevê que o feto só possui direitos após o nascimento com vida. O nascituro tem garantias civis, como o direito à identidade genética, à indenização pela morte do pai, à imagem, à honra, a alimentos gravídicos e à herança.
Se aprovado no colegiado, o PL deverá ser analisado ainda na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara para, então, ir ao plenário da Casa.
Direitos da mulher
Por outro lado, quem é contra a ideia entende que a proposta atinge os direitos das mulheres. Mais de 50 organizações brasileiras ligadas à defesa da mulher assinam uma campanha que pretende pressionar o deputado Emanuel Pinheiro Neto a retirar de pauta o projeto 478/2007. O abaixo-assinado virtual contava, até 18h desta segunda-feira (12), com quase 70 mil assinaturas de pessoas que enviaram e-mail ao deputado. Na solicitação, a campanha afirma que o projeto "é um retrocesso", especialmente por estabelecer direitos a um feto em estágio embrionário em detrimento ao direito das mulheres, inclusive nos casos em que o aborto já é legalizado.
Para a advogada feminista e sócia-proprietária da Escola Brasileira de Direitos das Mulheres, Gabriela Souza, o Estatuto do Nascituro é inconstitucional porque colide com artigos de tratados internacionais em que o Brasil é signatário, como Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, mais conhecida como Convenção de Belém do Pará. Gabriela afirma que a proposta é "um retrocesso e uma violência sem tamanho contra mulheres e crianças". Segundo ela, o Brasil tem índices elevados de violência sexual cometida por pessoas conhecidas da vítima, ou seja, que acontecem dentro de casa.
— Esse estatuto, muito além de subverter uma lógica de valor de vida, é violentador e faz parte de uma cultura do estupro tão vigente no nosso país, que viola diariamente os direitos humanos e a liberdade sexual e reprodutiva de meninas e mulheres. O objetivo desse projeto é dar valor de vida ao que não tem vida, em detrimento da vida das mulheres. Hoje, é considerado vida quando a criança nasce, respirando — justifica a advogada.
Outra questão levantada por Gabriela é quanto à criminalização do aborto em qualquer situação, inclusive, nos hoje já legais casos com autorização. Para a advogada, o Brasil precisa desvincular a questão do aborto legal de qualquer tipo de discussão religiosa sobre o tema.
— O aborto é um fato. As mulheres fazem aborto, independentemente da religião, da classe social e da renda. A única questão é que as mulheres pobres morrem e as mulheres ricas têm acesso a fazer o procedimento de forma clandestina, mas segura — relata.
Casos de fertilização
O PL também prevê que "indivíduos concebidos in vitro", mesmo antes da transferência para o útero da mulher, tenham as mesmas garantias de direito à vida. Deputadas de oposição alegam que o procedimento de fertilização pode exigir descartes de embriões.
Em setembro, o Conselho Federal de Medicina (CFM) atualizou as regras para reprodução assistida no Brasil, incluindo o descarte dos embriões. Conforme a resolução, o material não precisa de autorização judicial para ser descartado A base para o CFM fazer esta alteração foi a lei de biossegurança de 2005, que diz que os embriões usados para pesquisa de célula tronco, e que devem ser ignorados, não precisam de autorização. Com isso, os demais também não deveriam precisar de licença. Atualmente, os embriões congelados por mais de três anos podem ser descartados se os pacientes decidirem tomar essa posição.
Texto completo da campanha "Não ao Estatuto do Nascituro" enviado ao relator do PL 478/2007
"Esse projeto é um retrocesso para as meninas, mulheres e pessoas que gestam no Brasil: o Estatuto estabelece uma gama direitos a um feto em estágio embrionário em detrimento ao direito das mulheres, inclusive nos casos em que o aborto já é legalizado, tais como estupro, anencefalia e risco de vida para mulher.
De acordo com Fundo de População das Nações Unidas, o Brasil tem cerca de 19 mil nascimentos, ao ano, de mães entre 10 a 14 anos, o que pela lei já configura uma gravidez decorrente de estupro de menor. O caso da menina de 11 anos que foi revitimizada pela justiça tendo seu direito à interrupção da gravidez negado, não é um caso isolado: a violência sexual é uma realidade cruel no nosso país, e as meninas e mulheres precisam ter seus direitos e vidas protegidas. Não podemos tolerar que essas meninas e mulheres sejam submetidas à tortura de levar adiante uma gravidez nestas condições, como prevê o Estatuto do Nascituro.
A tese que o nascituro já deveria ser um sujeito de direitos cria uma aberração jurídica que não só é conflitiva com a nossa Constituição, como também fere tratados internacionais aos quais o Brasil está vinculado. No Brasil, a partir de dados enviados ao STF em julho de 2018, o Ministério da Saúde informou que de 2008 a 2017 o SUS gastou R$ 486 milhões com internações por complicação por aborto. Além disso, os abortos inseguros tenderiam a aumentar, impondo a quem precisa abortar sofrimento, medo e perseguição.
Pela vida das meninas e mulheres brasileiras, pelos seus direitos, e também pela garantia de um diálogo honesto e participativo - que não está acontecendo, visto que a votação ocorrerá a portas fechadas - exigimos que V.Exa retire de pauta o projeto 478/2007, que estabelece o Estatuto do Nascituro."