Pedaços da história têm chegado ao Rio Grande do Sul pelo oceano, instigando o imaginário dos gaúchos: fardos de borracha que formavam a carga de navios nazistas, afundados durante a Segunda Guerra Mundial, emergiram do mar e viraram alvo de fotos, comentários e muitas teorias. A reportagem de GZH registrou a primeira aparição em 11 de outubro, na Praia do Bojuru, em São José do Norte, litoral sul do Estado.
Entre o final do mês e o início de novembro, outras cinco “caixas”, como os blocos de lâminas de látex se parecem, foram encontradas por pescadores em Xangri-Lá, no Litoral Norte, e Tavares, Litoral Médio — onde vive o pescador Elton Chaves Lopes, 64 anos.
— Quando encontrei, a primeira coisa que eu pensei era o que poderia ser. Cortei um pedacinho e vi que era uma borracha. Vi a reportagem de Bojuru e entendi, mas ficou a sensação da história, pensando quem encostou naquilo, o processo que teve até chegar à beira da praia — relata.
Lopes levou dois dos objetos históricos para casa. O mais recente achado foi no último sábado (5), mas esse terceiro lote permanece na areia, a poucos metros do farol de Tavares.
— Muito pesado, deixei como estava — explica o pescador, sobre os cerca de cem quilos do conjunto.
Aparentemente, o material localizado essa semana no Litoral Médio ficou exposto ao sol: está com as bordas escuras, como se tivesse sido queimado. A carga de Bojuru, pioneira nas aparições no RS, foi vista ainda no mar pelo pescador Márcio Leandro de Araújo Colares, 46 anos. Estava melhor conservado e tinha ainda uma moldura de crustáceos, do tempo em que boiou até chegar na areia — ao menos dois meses, segundo estimativas de especialistas consultados por GZH.
Explicação histórica
Os fardos eram levados desde a Ásia até a Europa, em navios de aliados da Alemanha nazista. Serviam para fabricação de pneus dos veículos militares, roupas dos soldados, entre outras necessidades do conflito. Na época, a borracha se tornou insumo escasso e com valor de mercado elevado até mesmo no Brasil, confirma a doutora em História e professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) Cláudia Musa Fay, autora de pesquisas sobre os conflitos da metade do século passado. Algumas embarcações foram interceptadas por tropas norte-americanas, como no ano de 1944, quando os Estados Unidos montaram base no litoral brasileiro.
O surgimento, quase 80 anos depois, se explica principalmente pela atuação de empresas “piratas”, que vasculham o oceano atrás de metais valiosos que naufragaram. Ao quebrar o casco, a carga se desprende e emerge, navegando até encontrar a faixa de areia, segundo o oceanólogo Carlos Teixeira, egresso da Universidade Federal do Rio Grande (Furg) e atualmente professor da Universidade Federal do Ceará (UFC), onde houve uma grande onda de aparições dos fardos.
Instituto guardou outro fardo
Onofre Machado vive na localidade de Capão Comprido, também pertencente à Tavares. É vizinho do Parque Nacional da Lagoa do Peixe, e avistou um fardo nessa região.
— Deu mar grosso e agora tem muita coisa saindo da água — calcula, sobre o vento leste que tem carregado objetos e até animais mortos para a costa.
O objeto foi levado até a sede do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). O cemitério de navios que nunca foram removidos do fundo do mar levanta um temor: o risco do vazamento de óleo, alerta Riti Soares dos Santos, chefe do parna Lagoa do Peixe do ICMBio.
— Caso o óleo desses navios viesse a aparecer, seria muito preocupante. Mas a gente tem monitoramentos diários em campo. (Em caso de) Qualquer surgimento, medidas serão tomadas, com certeza — garante o ambientalista.
O biólogo Maurício Tavares, do Centro de Estudos Costeiros, Limnológicos e Marinhos (Ceclimar), foi acionado por um pescador enquanto fazia a contabilidade de pinguins mortos que chegaram à margem do Litoral Norte — os animais são transportados pelo mesmo vento lente leste que carrega o lixo e os fardos de borracha nazistas. O homem que parou o biológo apontou para perto de uma duna, próximo da plataforma de pesca de Atlântida, município de Xangrilá.
— "Tu viu ali?", ele me apontou. Era um bloco desses quadradões, cheio de lepas (espécie de crustáceo). Esse mar está jogando bastante coisa — recorda.