Bitucas de cigarro, lixo deixado por banhistas e restos de material de pesca misturam-se, nas areias das praias gaúchas, a garrafas e garrafões, tonéis, latas e embalagens Tetra Pak (compostas por papelão, polietileno e alumínio) produzidas em diferentes continentes. O plástico representa a maior parte do que fica depositado em solo e costuma chegar às areias da praia gaúcha trazido pelos próprios frequentadores ou depois ser lançado ao mar pelas embarcações e percorrer longas distâncias. Trata-se de um problema global e que há décadas vem sendo alertado pelos pesquisadores e entidades preocupadas com a degradação do meio ambiente. O lixo jogado nas praias e no mar representa uma ameaça crescente a todo o ecossistema do planeta.
De tudo o que é despejado no oceano, cerca de 85% é plástico, segundo o relatório Da Poluição à Solução: Uma análise global sobre lixo marinho e poluição plástica, produzido pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) e apresentado na Assembleia da Organização das Nações Unidas (ONU) para o Meio Ambiente (Unea 5.2), em Nairóbi, no Quênia, em março deste ano. Durante o encontro, representantes de 175 nações aprovaram uma resolução histórica pelo fim da poluição plástica.
O documento estabeleceu um Comitê Intergovernamental de Negociação cuja meta é concretizar uma proposta para um acordo global juridicamente vinculante até o fim de 2024. Este acordo indicará alternativas para abordar todo o ciclo de vida do plástico, o design de produtos e materiais reutilizáveis e recicláveis, além da necessidade de maior colaboração internacional para facilitar o acesso à tecnologia, à capacitação e à cooperação científica e técnica.
Conforme o Pnuma, cerca de 11 milhões de toneladas de resíduos plásticos entram nos oceanos anualmente, podendo triplicar até 2040, e mais de 800 espécies marinhas e costeiras são afetadas, seja por ingestão, emaranhamento e outros perigos. Nem a área mais profunda dos mares, a Fossa das Marianas, com 11 quilômetros de profundidade e localizada no Pacífico, escapa do lixo, se tornando um sumidouro de restos. No meio do oceano, zonas de acúmulo de resíduos se formam com o giro das correntes marinhas. E há também o que chega à terra circulando pelas correntes locais depois de ser descartado das embarcações – recorrente no sul do Estado, particularmente no balneário Cassino, em Rio Grande.
Por ser uma região mais plana, diz o secretário de Meio Ambiente de Rio Grande, Pedro Fruet, o Cassino acabou se tornando um depósito a céu aberto do que vem de alto-mar. Fruet ainda lembra que, para piorar a situação, o balneário recebe todo tipo de lixo deixado por frequentadores e despejado nas águas da Lagoa dos Patos por moradores das cidades que ficam nas margens, já que o encontro da laguna com o Atlântico é bem ao lado da Praia do Cassino.
Entre 2016 e 2019, os pesquisadores percorreram inúmeras vezes os cerca de 60 quilômetros que separam a área urbanizada do Cassino até o Farol Sarita, no limite com Santa Vitória do Palmar, recolhendo todos os tipos de lixo. A análise apontou uma estimativa de 2 mil tipos de dejetos de diferentes tamanhos a cada um quilômetro do balneário, sendo a maioria descarte de frequentadores da praia. De todo o material recolhido, 90% era plástico.
Outra ponta da pesquisa do projeto Lixo Marinho estudou os animais marinhos da região, com números entristecedores. De 86 tartarugas marinhas examinadas, mais de 50% tinham lixo no organismo. Em um único animal, foram encontrados 544 pedaços de resíduos. O grupo também pesquisou a ingestão do material por peixes. Foram analisadas oito espécies: anchova, bonito, pescada, castanha, pescadinha, corvina, goete, cabrinha Cerca de 30% dos animais haviam ingerido plástico. A equipe do projeto ainda investigou a situação dos invertebrados do estuário da Lagoa dos Patos. O resultado foi igualmente perturbador: foi encontrado lixo no trato intestinal de 35% dos camarões-rosa e dos siris-azuis analisados.
— Tanto os peixes quanto os invertebrados estão engolindo o plástico que é descartado por nós. Há espécies que comemos o organismo inteiro e, nesses casos, se o animal está com algum tipo de microplástico no seu trato, vamos consumir diretamente esses materiais, absorvendo também o microplástico. E até indiretamente podemos estar consumindo-os, porque o plástico pode acumular resíduos tóxicos que estão no ambiente. Esses compostos podem ser passados para os tecidos do animal que come o plástico, e o ser humano, ingerindo esse animal, acaba absorvendo esses compostos — alerta a oceanóloga.
Vida marinha em risco
- Os plásticos não se biodegradam (decomposição natural sem gerar resíduos prejudiciais ao meio ambiente). Em vez disso, eles se decompõem com o tempo em pedaços cada vez menores conhecidos como microplásticos e nanoplásticos, que podem ter impactos prejudiciais significativos.
- Sacolas plásticas costumam ser confundidas com águas-vivas pelas tartarugas marinhas, que acabam se alimentando de lixo e morrendo lentamente de fome.
- Por terem cheiro e aparência de comida, plásticos são bicados pelas aves marinhas.
- Mamíferos marinhos, tartarugas marinhas e outros animais, muitas vezes se afogam depois de ficarem presos em plásticos descartados, como artigos de pesca e embalagens.
- A baleia-franca-do-atlântico-norte, uma das espécies mais ameaçadas do mundo, tem como uma das principais causas de morte o emaranhamento em redes de pesca fantasma.
- As toxinas encontradas nos plásticos afetam a teia alimentar oceânica: os pedaços de plástico adsorvem os poluentes que escoam da terra para o mar, incluindo os resíduos farmacêuticos e industriais. A toxicidade pode se transferir pela cadeia alimentar à medida que as espécies marinhas se alimentam e são consumidas como alimento.
- Algas, moluscos e cracas podem atravessar o oceano grudadas em lixos flutuantes, podendo invadir e degradar ambientes e espécies aquáticas distantes.
Fonte: Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma)
No Litoral Sul, chegam embalagens de todos os continentes
No início de março, a equipe de GZH esteve no Cassino, quando pretendia percorrer cerca de 20 quilômetros para registrar o lixo vindo do mar. Dois quilômetros depois da área urbanizada, já foi possível constatar o tamanho do problema. Na beira da praia, uma lata de spray de espuma com a identificação da União Europeia parecia ter navegado muito e chegado há pouco, por conta das cracas (um tipo de crustáceo) grudadas no produto.
Em direção às dunas, também aparentando ter encontrado solo há poucos dias, uma garrafa de cinco litros de água produzida na Grécia começava a ser engolida pela areia trazida com o vento. Próximo à área onde estão os restos do navio Altair, havia um cemitério de lixo sendo descoberto pela ventania. Lá, garrafas de água e de cerveja de países asiáticos, europeus, africanos e das Américas guardavam pouca informação nos rótulos apagados.
Rapidamente, o motorista da equipe, Lídio Damasceno, ofereceu um saco de lixo de cem litros na tentativa de recolhermos o que encontrávamos pelo caminho. Em vão. Alguns passos depois, o recipiente já estava lotado e a sensação de impotência da equipe, instalada.
No Cassino
- 90% do lixo recolhido na praia é plástico.
- Mais de 50% das tartarugas marinhas encontradas contêm lixo no organismo.
- Cerca de 30% dos peixes ingerem plástico.
- Já na Lagoa dos Patos, entre os camarões-rosas e os siris-azuis, 35% contêm lixo no trato intestinal.
Reações em cadeia
O oceanógrafo e professor do Centro de Estudos Costeiros, Limnológicos e Marinhos (Ceclimar) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Gerson Fernandino, que assumiu a presidência do conselho do Fórum do Mar neste ano, lembra que os impactos do lixo no mar passam pelos organismos marinhos e atingem também a economia, a saúde pública e o turismo.
Em 2017, por exemplo, a Indonésia declarou uma "emergência do lixo" em partes de Bali, enquanto a Tailândia fechou a Baía de Maya, famosa pelo filme A Praia, para permitir que ela se recuperasse da poluição e de outros danos causados por turistas.
Fernandino alerta também para o aumento da concentração de uma substância ou elemento nos organismos vivos, à medida que percorre a cadeia alimentar, identificada como biomagnificação.
— Os organismos se alimentam do plástico, que fica retido no organismo, seja o próprio plástico ou compostos presentes nele. Então, um peixe, por exemplo, come este organismo e estes compostos passam para este predador. Na sequência, ele é consumido por seres humanos. Estamos num momento assustador do ponto de vista do quão constante é o plástico no mundo, na natureza — comenta.
O oceanógrafo aponta ainda que somente a limpeza das orlas e a reciclagem feita hoje não mudarão a situação do lixo no mar. Estudos apontam que apenas 14% das embalagens no mundo são recolhidas para reciclagem. Fernandino faz uma analogia com uma torneira e o fluxo d’água:
— Imagine uma torneira aberta para encher uma banheira que é esquecida, deixando a água transbordar. O ideal é que fechemos a torneira e enxuguemos o chão. O que fazemos com o lixo, na verdade, é que só enxugamos o chão. Não estamos atacando a torneira, que é a fonte. É um problema que exige a participação de todos os atores sociais envolvidos: sociedade civil organizada, poder público, setor privado e todos os envolvidos na cadeia de produção do plástico. Desde a exploração do petróleo e gás, da distribuição até o consumidor, até os tomadores de decisão e os legisladores. Então, é uma questão multifacetada e deve ser tratada como tal — resume.
Exige a participação de todos: sociedade civil organizada, poder público, setor privado e todos os envolvidos na cadeia de produção do plástico"
GERSON FERNANDINO
Oceanógrafo e professor da UFRGS
Como é o controle
Leis para evitar a circulação de lixo no mar existem pelo menos desde a década de 1970, quando ocorreu a Convenção Internacional para a Prevenção da Poluição Causada por Navios, a Marpol 73/78.
— O anexo V daquela convenção já tratava das proibições de lançamento de qualquer tipo de resíduo plástico no oceano. Mas é um problema extremamente complexo — comenta o pesquisador.
Por meio da assessoria de imprensa, a Marinha do Brasil afirma ser proibido despejar lixo no mar. O Brasil é parte contratante da Marpol. Desta forma, "só é permitido o lançamento de lixo orgânico (restos de comida) e a partir de determinadas distâncias da costa. Na legislação brasileira, a Lei 9966/00 é específica e dispõe que o descarte de lixo no mar é proibido, exceto nos casos permitidos pela Marpol e sendo os procedimentos para a descarga aprovados pelo órgão ambiental competente. Há que se mencionar também a Política Nacional de Resíduos Sólidos, Lei nº 12.305/10, que proíbe a destinação ou disposição final de resíduos sólidos ou rejeitos em praias, no mar ou em quaisquer corpos hídricos", diz a nota enviada à reportagem.
No que se refere à fiscalização realizada pela Marinha do Brasil por meio de inspeções navais, são verificados junto às embarcações o Certificado Internacional de Prevenção de Poluição por Óleo, o Plano de Gerenciamento de Lixo, o Livro de Registro de Lixo, o funcionamento dos Equipamentos Separadores de Água/Óleo, documentos obrigatórios pelo Anexo V da Marpol, assim como os recibos entregues pelos portos, os vasilhames existentes a bordo, a segregação e a quantidade de lixo a bordo. Se for constatado descumprimento das obrigações por parte da embarcação fiscalizada, a situação pode gerar uma discrepância que, se não regularizada, restará no impedimento da desatracação do navio.
Existem também as obrigações gerais para as partes contratantes da Marpol, que se referem ao fornecimento adequado de instalações de recepção nos portos/terminais ou da provisão do serviço por empresas licenciadas e, ainda, de comunicar informações sobre as instalações de recepção ao Global Integrated Shipping Information System (Gisis), da Organização Marítima Internacional (IMO).
A Marinha do Brasil realiza reuniões de conselho de assessoramento, nas quais são convidados representantes dos governos federal, estadual e municipal, dos portos, dos órgãos de segurança pública, das colônias de pescadores, das marinas, as agências de navegação e da comunidade náutica. Nessas reuniões, vem sendo destacado o tema "combate ao lixo no mar", além de incentivar a aquisição de ecobarreiras (obstáculos que impedem a passagem de resíduos flutuantes) e ecoboats (barcos coletores de resíduos).
O tamanho do problema
- 11 milhões de toneladas de plástico entram nos oceanos anualmente.
- Mais de 800 espécies marinhas e costeiras são afetadas, seja por ingestão, emaranhamento e outros perigos.
- E vai piorar: previsão é de que o plástico jogado nos oceanos triplique nos próximos 20 anos.
- Ou seja, haverá mais de 30 milhões de toneladas de plástico escoando para os mares todos os anos até 2040.
- Isso equivale a 50 kg de plástico por metro de litoral em todo o mundo
Fonte: Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma)
Solução passa por pacto global
Somente com as soluções e tecnologias já existentes, a Pew Charitable Trusts, em parceria com universidades e entidades inglesas, elaborou um relatório indicando possibilidades para cortar em 80% o fluxo anual de descarte de plástico no oceano até 2040. O Quebrando a onda do plástico - uma avaliação abrangente de caminhos para impedir a poluição do plástico nos oceanos destacou que as regulamentações atuais se concentram em descarte e reciclagem, mas que será necessário um esforço mundial para reduzir o uso de plástico e encontrar substitutos para ele. O projeto também indica o aperfeiçoamento das práticas de reciclagem e a expansão da coleta de lixo. O relatório afirma não existir infraestrutura, financiamento e política para uso das tecnologias disponíveis que auxiliem no enfrentamento do desafio e aponta a necessidade de investimento na produção de novos plásticos para o desenvolvimento de sistemas de reutilização e recarga, materiais sustentáveis para substituir os atuais produtos, novos métodos de entrega, mais infraestrutura de coleta e melhores instalações de reciclagem.
Já o estudo realizado pelo Pnuma ressalta que a poluição plástica marinha reduz serviços atrelados ao ecossistema marinho em bilhões de dólares por ano. Os custos reais do lixo no mar e da poluição plástica na saúde humana, ambiental e social ainda estão sendo descobertos, segundo a entidade.