Boiando sobre as águas, um tesouro da Segunda Guerra Mundial foi resgatado por um pescador de Bojuru, balneário de São José do Norte, no sul do RS. Márcio Leandro de Araújo Colares, 46 anos, caminhava pela praia na primeira semana de outubro quando avistou o que parecia um baú escuro de moldura branca — as laterais estavam repletas de crustáceos. A maré alta da noite levou a caixa para perto das dunas, e Colares pôde tocar o objeto. Notou certa elasticidade: era um bloco com dezenas de lâminas de látex, borracha transportada desde a Ásia até a Europa, no ano de 1944, em cargueiros da Alemanha nazista.
— A gente encontra várias coisas na beira do mar. Dentadura, garrafa, moeda... Mas um objeto assim, com quase 80 anos, eu não esperava — conta o pescador.
Curioso, ouvinte de rádio e telespectador de canais de História, ele lembrou que já tinha visto algo parecido:
— Lembrei de ter visto uma reportagem sobre caixas misteriosas encontradas na Bahia. E na matéria falava que eram de um navio que afundou na guerra. Achei que fossem as mesmas.
O aparecimento das "caixas misteriosas", assim tratadas pela imprensa do Nordeste, ocorreu em 2021, quando a orla de Salvador foi tomada por inúmeros blocos com as mesmas características. Antes disso, já tinha relatos de achados nos Estados vizinhos de Alagoas e Sergipe, o que levou pesquisadores da Universidade Federal do Ceará (UFC) a investirem no tema.
O consenso de que se trata de material nazista foi determinado por uma série de fatores: a documentação de naufrágios no Atlântico, a descoberta de vídeos de barcos pesqueiros com os fardos, no mesmo ano, 1944, e a análise de ideogramas japoneses gravados na borracha. Aliado da Alemanha na Segunda Guerra, o Japão invadiu e dominou a Indochina Francesa, região onde hoje estão o Vietnã, Laos e Camboja. Há, no Ceará, fardos de borracha com o nome dessa antiga colônia francesa, mais um reforço na hipótese dos cientistas.
Atração no Bojuru
O pesado fardo recuperado no Rio Grande do Sul precisa de ao menos duas pessoas para ser transportado. Foi carregado em um trator da faixa de areia até a casa do pescador. Guardado no pátio, foi coberto por tábuas de madeira para evitar exposição direta ao sol. As galinhas, no entanto, não respeitaram o cerco.
— Elas comeram a maioria das cracas, esses crustáceos do lado — explica Colares.
Na praia, que não tem postes de luz ou água encanada, o objeto virou atração — apesar de a história ter sido contada para um grupo seleto, afirma o homem.
— É muito curioso ter vindo parar aqui na nossa região — diz o também pescador Rudinei Pereira da Silva, 38 anos.
Teorias das mais variadas surgiram de imediato.
— Será que é tipo um escudo pra proteger de um tiro? A gente pensou um monte de coisa — conta outro vizinho, Éverton de Paulo, 53 anos.
Colares tira seu sustento do mar, enche baldes no poço e é abastecido por energia solar ou eólica. Não tem internet banda larga ou outras modernidades, porém diz sentir pouca falta.
— Acordar e tomar um chimarrão olhando pro mar, não tem coisa melhor. Não saio daqui — promete.
Segundo objeto
Enquanto o pescador conversava com a equipe de GZH, na segunda-feira (1o), outra surpresa: ele avistou outro fardo no mar, cerca de oito quilômetros distante, parcialmente soterrado. No ponto descrito, foi encontrado o segundo bloco de folhas de látex com aspecto queimado nas pontas devido ao calor. Sem muito esforço, algumas camadas foram removidas. O miolo da borracha estava intacto, e um forte cheiro de pescado surgiu de um óleo que escorreu entre as lâminas.
Caixas são carga da guerra, acreditam pesquisadores
Entre os autores de dois artigos científicos sobre os fardos de borracha encontrados no Nordeste, o oceanólogo Carlos Teixeira, egresso da Universidade Federal do Rio Grande (Furg) e atualmente professor da UFC, avaliou as imagens que o repórter fotográfico Lauro Alves fez do achado de Bojuru.
— Definitivamente é o mesmo material — garante.
Ele levanta duas hipóteses para explicar por que as cargas emergiram quase oito décadas depois: corrosão natural do tempo ou ação de piratas, que mergulham atrás das relíquias do oceano.
— Existem empresas que estão pirateando cargas de metal, como titânio e cobre. A gente está falando de até US$ 50 milhões em carga dos naufrágios, que ficaram cerca de seis mil metros de profundidade. Quando quebra o deque do navio para tirar o metal, esse material vem para a superfície — detalha.
Professor do Instituto de Ciências do Mar da UFC, Luís Ernesto Arruda explica que os materiais localizados agora podem ter sido transportados por três navios que permanecem naufragados: Burgerland, Weserland e o SS Rio Grande — o nome latino foi escolhido para despistar os adversários na época. As embarcações eram conhecidas como blocked runner (corredor bloqueado, em uma tradução livre), pois tinham a missão de romper barreiras inimigas para transportar os mais variados produtos. Porém, os países que faziam oposição a Hitler, em especial os Estados Unidos, montaram base na costa brasileira e conseguiram impedir o avanço de parte dos cargueiros.
— Nessa foto, de 1944, vemos pescadores de Fortaleza negociando os fardos com os americanos — compara, em uma imagem em preto e branco com blocos muito parecidos aos recuperados nos últimos anos.
Após se soltarem do navio, as caixas flutuaram por ao menos dois meses, até pararem no litoral gaúcho. A análise é do professor do Instituto de Oceanografia da Furg, André Colling.
— Esses organismos marinhos encrustados são lepas, muito comuns em objetos flutuantes marinhos. Se notam adultos que parecem ter tamanho máximo, com cerca de 60 dias — analisa o oceanólogo.
A "viagem homérica" é orientada pelas correntes marítimas, segundo o professor de Oceanografia Física da Furg, Leopoldo Rota de Oliveira:
— A corrente norte do Brasil, que flui para o Norte ao longo da costa, possibilitou as caixas irem parar na costa do Ceará. Já a corrente do Brasil, que flui para o Sul, transportou as caixas para o litoral sul gaúcho — justifica o especialista.
Por que a borracha era tão valiosa?
Segundo a doutora em História e professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Cláudia Musa Fay, a borracha era matéria-prima para a fabricação de pneus de veículos militares, uniformes de soldados e no revestimento de cabos submarinos.
No período da Segunda Guerra Mundial, o insumo ficou escasso no mundo inteiro, inclusive no Brasil, onde o governo teve de distribuir pneus recapados a taxistas em uma campanha pedindo pelo uso moderado dos automóveis. O tema ganhou manchetes do jornal carioca A Noite, edição de 6 de abril de 1943: "a borracha é o assunto do momento", abria um texto sobre a indústria nacional.
O pescador que as recuperou vê outro valor: o da pesquisa. Ele disse que pretende guardar os objetos em casa até que um pesquisador ou museu, por exemplo, tenham interesse em uma análise.
— Ah, eu ficaria muito feliz se fosse levado a algum museu ou na universidade — vislumbra.
A carga histórica não é o único achado do pescador que, no mesmo terreno, guarda outro item, que acredita ser uma peça de algum veleiro. Sem saber a história por trás dele, o objeto faz referência a uma cidade norte-americana: Houston, no Texas.