A princípio, não há muito em comum entre o barítono de um coral e um praticante de crossfit. A pandemia do coronavírus que nos forçou a exercitar um isolamento social, todavia, fez com que pessoas com hobbies diferentes se aproximassem em um aspecto: todos tiveram de pensar formas inusitadas de manter suas atividades favoritas em dia.
Se por um lado 2020 nos desafia com uma crise, por outro nos proporciona superá-la com ferramentas de comunicação em tempo real. Conheça, abaixo, três exemplos de grupos que encontraram na internet e na própria força de vontade formas de tornar o confinamento menos doloroso e, por que não, prazeroso em alguns momentos.
Crossfit a distância tem improviso e parceria
Quando chega mais ou menos a metade da aula, o professor anuncia:
– Agora, todo mundo pega a mochila.
Então, uma voz feminina emana da tela:
– Professor! E quem não tem mochila?
– Hmmm. Não tem um galão d’água aí na tua casa?
Outra negativa. Algumas outras possibilidade de peso são cogitadas: produtos de limpeza, saco de farinha… Até que vem uma nova proposta:
– Pode ser um cofrinho de moedas? Está bem cheio.
– Pode, pode. Essa é novidade…
O professor Cristiano Assumpção e outras 25 telas, cada qual com um aluno diferente, sorriem enquanto dão andamento a mais um treino da Crossfit Taura, agora realizado de forma remota por meio de um aplicativo de teleconferências – desde o início da pandemia da covid-19 convertido em uma das ferramentas mais populares para driblar as limitações do isolamento social. E crossfit nunca combinou com isolamento social.
– É uma modalidade que depende muito de um aluno puxar o outro. De um se motivar com a força de vontade do outro. Por isso, talvez, fazer as aulas por live não funcionou muito bem. Faltava o espírito de grupo. Então inventamos essas aulas pelo (aplicativo) Zoom – conta Diego Gevaerd, um dos administradores da Taura.
Demorou um certo tempo até que a academia chegasse ao melhor formato para contornar o problema do confinamento. Estabeleceu-se o seguinte: no aplicativo da academia os alunos fazem check-in para o horário da aula que desejarem – atualmente são nove opções, além do aulão de sábado, uma tradição da academia.
Para cada treino há uma lista de “material didático” de objetos caseiros que o aluno deve ter à mão, como cabos de vassoura, mochilas cheias de mantimentos, litros de amaciante e tudo mais.
O objetivo final é, na medida do possível, emular os equipamentos e o clima do “box”, onde ocorrem as aulas.
O companheirismo fica evidente no treino acompanhado virtualmente pela reportagem de GaúchaZH. Em telas em que se observam cenários como varandas, salas de estar, garagens e figurantes incidentais como cachorros, gatos e bebês (que por vezes acabam sendo usados para levantamento de peso), os alunos conversam, se provocam, suam e dão risada até uma salva de palmas que encerra a experiência. Enquanto isso, o professor que comanda o treino está no pátio da casa da mãe, nos confins do bairro Sarandi, na zona norte de Porto Alegre.
– O clima da aula nem sempre chega a ser o mesmo. Mas saber que há outros amigos ali juntos no mesmo horário treinando é uma motivação, sim. Um faz piada, outro critica a música, isso faz uma diferença. Eu sou uma que, se não tivesse umas amigas no WhatsApp me convencendo a treinar, talvez tivesse me entregado – conta Camila Braz Menezes, farmacêutica bioquímica do Hospital Conceição, atualmente atolada de trabalho em razão da pandemia.
Para outros tantos, os 50 minutos de suador em frente à tela são o ponto alto do dia.
– Já percebemos que o tédio vem muito rápido no confinamento. Logo em seguida vamos ter de reinventar as aulas de novo. Mas, por enquanto, o retorno tem sido ótimo. São muitos casos de alunos que nos procuram só para dizer como o treino está sendo importante para eles não enlouquecerem – conta Diego.
Jogos de RPG oferecem outras vidas possíveis
Um planeta assolado por uma epidemia ainda desconhecida, que impõe restrições e coloca em risco a população. Cada um, respeitando as suas particularidades, precisa encontrar novas formas de completar suas missões e preservar a vida uns dos outros. A vida real, observa a pedagoga Camila Gamino da Costa, ganhou ares de um jogo de RPG:
– Sabe que é uma coincidência incrível, mas há pouco tempo eu participei de um jogo em que estabelecemos que a trama era exatamente essa: uma praga havia se abatido sobre a humanidade e tínhamos de decidir o que fazer. Agora, cogitamos mudar porque está real demais para ser verdade.
Em uma definição simplificada, RPG (do inglês: role playing game) é um tipo de jogo de encenação iniciado nos Estados Unidos na década de 1970. Há um mestre, que propõe uma situação de início, e cada jogador vive um personagem. Os participantes vão realizando ações e construindo a história juntos. Eles não competem, mas obedecem a um conjunto de regras, em geral descritas em um livro.
Por ser diabética, Camila está no grupo para quem seria arriscado até ir ao supermercado. Para preservá-la, o namorado José Mauro Trevisan, roteirista e escritor, também está preso no apartamento do casal, no bairro Cidade Baixa. A solução para matar o tempo foi ampliar o hobby de outrora: as mesas de RPG. Ela, que antes participava de três jogos presenciais, agora faz parte de cinco online. Camila conta:
– Quatro são medievais e um é faroeste, mas com zumbis.
Enquanto em sua própria vida não pode sequer botar o pé para fora do apartamento para tirar o lixo, a pedagoga se transforma em outras cinco personagens com características e missões diferentes umas das outras. Em uma das tramas, vive uma deusa do conhecimento em busca de um lugar místico que pode ressuscitar pessoas. Em outra, encarna uma prostituta de cabaré às voltas com eventos sobrenaturais que esconde a existência de um filho fora da cidade.
– Sinto falta das mesas presenciais porque a imaginação vem junto da convivência com os amigos. A experiência de jogar online tem coisas legais também, como compartilhar mapas, imagens, músicas. De qualquer forma, é um luxo imaginar outras vidas em que posso fazer mil coisas e não apenas pensar nas restrições da minha, atualmente – brinca.
Para quem nunca tentou, a quarentena é um ótimo período para aprender RPG. Pensando nisso, a Jambô Editora disponibilizou em seu site o manual Dragão Brasil – Como Jogar RPG de Mesa pela Internet. É garantia de experiências tão surreais quanto a covid-19, mas sem risco para os "jogadores".
Quem canta seus males do isolamento espanta
A melhor forma de fazê-lo veio com o tempo, mas que achar um jeito de reunir o Coral Viva la Vida durante a pandemia seria um acerto estava claro desde o primeiro reencontro virtual do grupo.
– Nossa, mesmo naquele caos de não sabermos bem o que fazer foi uma alegria tão grande! Um mostrando o cachorro, outro o gato, outro o bolo que tinha feito naquela tarde – relembra a soprano Cintia de los Santos, preparadora vocal do grupo criado em 2015.
Quem trabalha com música sabe que a comunicação por videoconferência tem lá seus complicadores nesse campo. O delay entre um falar e o outro escutar, que atrapalha um pouco os diálogos mas não a ponto de inviabilizar aulas e conversas, torna-se um problema imenso entre cantores e instrumentistas. Inviabiliza, por exemplo, que todos treinem uma mesma música simultaneamente.
Para retomar os ensaios do Viva la Vida, Cintia e o marido, Eduardo Alves, regente do grupo, optaram então por um trabalho voz a voz. Os cantores foram divididos em turmas conforme o seu “naipe” no coral: sopranos, contraltos, tenores, barítonos e baixo. Cada um trabalha seu trecho de uma música, e cada voz é analisada individualmente por professores e colegas.
– O resultado tem sido surpreendente. Nunca tínhamos feito esse trabalho de formiguinha, um por um, verso por verso, e nunca os alunos tinham conhecido e aprimorado a sua própria voz tão no detalhe – conta a preparadora.
Mais do que obstáculo técnico, para voltar a ensaiar, o Viva la Vida e outros grupos dos quais Cintia participa enfrentaram problemas psicológicos com a pandemia.
– Foram muitos os casos de pessoas que me diziam: “Simplesmente não consigo cantar. Tento, e a voz não sai”. E elas não estavam doentes, estavam somatizando essa preocupação. Tivemos que correr atrás de formas de resgatar a alegria das pessoas – revela Cintia.
Conforme os cantores vão superando a tristeza do isolamento e se permitindo momentos de prazer, Eduardo foi atrás de uma forma de viabilizar outro ponto fundamental: o público. Com apresentações presenciais por ora canceladas, o primeiro canto do Viva la Vida desse tempo de pandemia chegou ao streaming na última quinta. Após um árduo trabalho de edição com colagens das 35 vozes, o grupo publicou um vídeo cantando Daqui Só se Leva o Amor, do Jota Quest. Confira abaixo:
Agora, verso por verso, voz por voz, enquanto espera para retornar aos encontros presenciais das noites de segunda-feira, o grupo trabalha uma música escolhida a dedo para este estranho outono. Diz a letra de Lenine: “Enquanto todo mundo espera a cura do mal/ E a loucura finge que isso tudo é normal/ Eu finjo ter paciência”.
Organize-se
Veja como manter seu hobby durante a pandemia
- Em vez de pensar no que você vai perder ao fazer sua atividade predileta online, foque em manter o que ela tem de legal. Se o bacana de um sarau entre amigos era o vinho à meia-luz, faça esse clima em casa
- Descubra quem mais sente falta dessa atividade e monte um grupo. É uma forma de um motivar o outro e ter aliados na briga contra o pijama e o sofá
- Estabeleça dias e horários para realizar os seus hobbies e respeite esse calendário como um compromisso. Quanto mais você postergar algo porque pode fazer a qualquer momento em casa, menor a chance de fazê-lo