No dia 10 de maio, às 11h, Mauro Trevisan — ou J.M. Trevisan, como é conhecido no meio literário de fantasia — resolveu fazer uma transmissão na internet para anunciar o início da arrecadação de uma campanha de financiamento coletivo no site Catarse. Os autores da Jambô Editora, do Centro Histórico de Porto Alegre, pediam R$ 80 mil para o desenvolvimento do RPG Tormenta 20, sobre o qual falaremos em seguida.
— A campanha começaria ao meio-dia. Como sou um pessimista nato, resolvi fazer a live uma hora antes convocando uma galerinha para dar um primeiro gás nas doações. Para não começar com um valor muito baixo — conta o autor de 43 anos.
Quando a campanha começou, surgiram R$ 700 na conta. O autor sorriu e continuou conversando com a audiência. Quando atualizou a tela, minutos depois, tomou o primeiro susto: o placar de arrecadações já estava em R$ 10 mil. Mais alguns minutos e pulou para R$ 30 mil. Animado, brincou que se a meta fosse atendida em 24 horas, estaria de peruca na próxima transmissão.
O carequíssimo Trevisan teve de recorrer a uma das perucas de cosplay da esposa, Camila, bem antes do estimado. Em uma hora, a meta de R$ 80 mil foi batida. E foi apenas o primeiro feito. No primeiro dia, foram coletados R$ 390 mil — o que rendeu o "Prêmio Jack Bauer" do site, de maior arrecadação em 24 horas. Encerrados os dois meses de campanha, o Tormenta 20 recebeu R$ 1.918.486,00, o maior valor já arrecadado em financiamentos do tipo no Brasil. O recorde anterior foi a mobilização para reorganizar a exposição Queermuseu no Rio de Janeiro após ela ser cancelada em Porto Alegre (R$ 1.081.176,00).
Para compreender a força do fenômeno, é preciso primeiro explicar o que é o Tormenta e, antes disso, o que é RPG. Leonel Caldela, um dos cinco autores, parece acostumado a explicar do que se trata para quem é de fora desse universo:
— RPG (do inglês, role playing game) é um tipo de jogo que começou nos Estados Unidos na década de 1970. Há um mestre, que propõe uma situação de início, e cada jogador comanda um personagem. Os jogadores vão realizando ações e construindo a história juntos. Eles não competem, mas obedecem a um conjunto de regras, em geral descritas em um livro que serve como guia daquele universo todo.
Na década de 1990, o RPG se popularizava no Brasil, mas quase sempre com publicações importadas. Em 1999, para comemorar a 50ª edição de uma revista dedicada ao gênero, a Dragão Brasil, foi lançado o Tormenta, um suplemento de 80 páginas com a proposta de um RPG nacional. Como seus antecessores gringos, o RPG se passa em um universo medieval, com diferentes raças e um diferencial: as localidades podem ser atingidas pela tal tormenta, uma tempestade de sangue que jamais cessa.
— Como a revista era vendida em bancas pelo Brasil inteiro, com tiragem de uns 20 mil exemplares, isso criou uma alternativa de RPG nacional, em português e barato. Nunca deixamos de publicar atualizações do Tormenta, assim como expansões e romances daquele universo. Sabíamos que o sucesso era grande, que passou de uma geração a outra, mas só agora deu para mensurar de verdade — conta Trevisan.
O Tormenta 20 é uma proposta de reinício do jogo 20 anos depois, com um novo livro de capa dura e ilustrações de primeira qualidade apresentando novas localidades, personagens, regras e outros pormenores. O produto de luxo é um dos motivos do sucesso do financiamento. Em média, cada um dos 6.353 colaboradores gastou R$ 300 na vaquinha, assegurando como recompensa um livro físico do novo jogo e outros suvenires. A previsão de entrega é em janeiro de 2020.
— Mas também me impressionou que mais de 2 mil pessoas fizeram a doação de R$ 50, que dá direito ao PDF do livro. Nós, que trabalhamos no ramo, sabemos que distribuir um livro em PDF é pedir para ser pirateado, mas essa galera toda pagou por algo que poderia obter ilegalmente com certa facilidade — opina Trevisan.
Como o valor arrecadado superou todas as expectativas, os autores farão um curta-metragem baseado em Tormenta. O sucesso da iniciativa dá visibilidade a um universo de consumidores de literatura e jogos de fantasia que é gigantesco como mercado, mas curiosamente quase invisível para quem é de fora do meio. Leonel Caldela, que se uniu ao Tormenta em 2003, é um exemplo em pessoa. Aos 40 anos, tem nada menos do que 11 romances publicados relacionados ao universo do RPG.
— A gente observa uma diferença entre o que é considerado em premiações ou pela crítica literária e o que é aceito pelo público. Existe essa divisão entre a fantasia e a dita literatura intelectualizada — aponta Leonel.
Trevisan exemplifica com o próprio caso do financiamento.
— Cada campanha que superávamos, eu dava uma brincada no Twitter para trocar cumprimentos com outros organizadores. Por mais técnicos que fossem os projetos, conforme a vaquinha fazia sucesso, aparecia uma série de reportagens sobre eles. No nosso caso, batemos o recorde nacional e vocês são apenas o terceiro veículo de grande mídia a falar conosco. E tínhamos amigos em um dos outros (risos). Ou seja, falta uma levantada de bola no bom sentido, porque há um trabalho sendo bem feito.
Os números da Tormenta
- Meta de R$ 80 mil atingida em um hora
- R$ 390 mil arrecadados em 24h
- R$ 1.918.486,00 arrecadados no total
- 6.353 apoiadores
- 2.398% da meta atingida