Por Armindo Trevisan
Poeta, crítico de arte, autor, entre outros, de “O Rosto de Cristo”
Talvez se possa formular nos seguintes termos uma grande questão: será possível entender a covid-19 a partir de uma atitude religiosa diante da vida?
Em nossa opinião, seria temerário intentar uma explicação evangélica da pandemia no âmbito de uma leitura puramente bíblica. A situação parece exigir um suplemento teológico mais abrangente.
Se consultarmos os Evangelhos, veremos que não narram nenhuma desgraça coletiva, semelhante à covid-19, no tempo de Jesus. O que preocupava o povo de Israel era a opressão do Império Romano. Um autorizado teólogo, Joachim Gnilka, recorda que “se pode concluir, em última instância, que a acusação principal levantada contra Jesus, para condená-lo à morte, foi uma acusação política”, ou seja, “a de perturbar a ordem pública e política garantida pelo Estado romano”.
Jesus evitou alinhar-se a favor de qualquer ideologia. A Pilatos, declarou: “Meu reino não é deste mundo”. Diante, pois, da atual pandemia, parece razoável recorrer à noção de mistério. Sabemos pouco sobre o vírus. Quem poderia precisar as causas de tão gigantesca subversão dos padrões de nossa sociedade?
Vejamos como Henri de Lubac define o mistério: “O mistério está para sempre fora do alcance do homem, porque é qualitativamente diferente de qualquer objeto da ciência humana; contudo, nos atinge, age em nós, e sua revelação nos esclarece a respeito de nós mesmos”. Talvez seja aqui o lugar para inserirmos uma advertência de São Paulo, na Carta aos Romanos: “Ó, profundeza da riqueza, da sabedoria e da ciência de Deus!
Quão insondáveis são os seus julgamentos e impenetráveis, os seus caminhos! Quem, com efeito, conheceu o pensamento do Senhor? Quem foi o seu Conselheiro?”.
Com tais pressupostos, atrevemo-nos a evocar aos leitores um episódio do Novo Testamento, no qual Jesus comentou a queda de uma torre em Jerusalém, acidente que acarretou a morte de 18 pessoas. Jesus disse: “Pensais que eram mais culpadas do que qualquer outro habitante de Jerusalém?
Não, eu vo-lo digo, mas se vós não vos converterdes, perecereis todos da mesma maneira” (Evangelho de Lucas, cap. 13, 4-5).
Nossas interrogações, sempre respeitosas, ainda que eventualmente inadequadas, são as seguintes:
- Por que Jesus não explicou as razões de tão grave ocorrência?
- Por que igualou os mortos do acidente aos habitantes de Jerusalém que, aparentemente, não se relacionavam com o acidente?
- Por que levantou a questão acima descrita sobre a culpa dos mortos da Torre de Siloé?
Talvez as palavras do Senhor possam ser interpretadas de duas maneiras: ou os mortos da Torre de Siloé eram tão culpados quanto os habitantes de Jerusalém ou, talvez, ninguém deveria ser considerado culpado. As palavras finais de Jesus sempre nos deixaram em grande perplexidade: “Se não vos converterdes, perecereis todos da mesma maneira”.
É impossível atribuir a Jesus qualquer “vingança” contra os homens. Portanto, excluamos que a covid-19 possa ter surgido como uma espécie de punição a um mundo materialista, indiferente, hostil ao Evangelho. Qual, então, a explicação alternativa a esse mal misterioso?
Pensamos que as palavras de Jesus sempre aparecem envoltas em mistério. Nem tudo pode ser esclarecido pelos biblistas. Há momentos em que a fé cristã necessita calar-se. O absurdo da realidade, em um caso de tal gravidade, também indica que a razão deve curvar-se ante o inacessível. As explicações científicas dão conta da evidência – a covid-19 existe –, mas por que está entre nós com tal grau de devastação?
A pandemia convida a todos, cristãos ou não, à humildade. A insondabilidade dos desígnios de Deus é, de certo modo, semelhante (uma semelhança longínqua, é verdade) à dos fornos crematórios de Auschwitz. Com uma diferença: em Auschwitz sabia-se o quanto de monstruosidade acionava os fornos. Nas circunstâncias atuais, não há pista visível de uma maldade concreta.
Cremos que seria a todos conveniente associar-nos a Jó:
Sou insignificante, que vou responder?
Ponho a minha mão sobre a boca.
Já falei uma vez, nada mais digo;
Duas vezes... Nada acrescentarei.
(Jó, 40, 4-5)
E ainda:
Bem sei que podes tudo,
que nenhum projeto escapa ao teu poder.
Quem está a denegrir a providência
Sem conhecimento de causa?
Pois é, eu abordei, sem sabê-lo,
Maravilhas além de mim, que não entendia.
(...)
Só por ouvir dizer, te conhecia;
Mas agora, viram-te meus olhos.
Também, por isso, tenho horror de mim
E retrato-me, no pó e na cinza.
Diante do coronavírus, nós, cristãos, padecemos da mesma aflição dos descrentes, com a diferença de que, como crentes, podemos orar para que nossa “falta de visão” se transmude em “visão de fé”.
A pandemia atual evoca a dimensão misteriosa da mensagem evangélica. Não seria hora, também, de assimilarmos o que fundadores de outras religiões, especialmente Buda, nos ensinaram? Podemos aprender ainda muitíssimo com a atuação dos médicos e enfermeiras e de outros auxiliares da saúde pública – que nos estão dando magníficos exemplos de excepcional generosidade e desprendimento.