Criada em Uberlândia (MG) em 2014, a campanha Janeiro Branco, que tem como objetivo a conscientização quanto à saúde mental, foi idealizada pelo professor e psicólogo mineiro Leonardo Abrahão. Desde então, inspirou ações em outros Estados. Em 2019, a ação ganhou força após tornar-se lei no Rio Grande do Sul. A cor e o mês foram escolhidos porque, no início do ano, estamos propensos a planejar o futuro, vendo a vida como uma página em branco.
Hoje, Abrahão, também formado em Direito e ex-professor de história e sociologia, é presidente do Instituto Janeiro Branco. A esposa, a também psicóloga Valéria Ribeiro, 38 anos, é a vice. O casal esteve na capital gaúcha no sábado passado para um debate sobre saúde mental após a peça de teatro TOC – Uma Comédia Obsessivo Compulsiva, encenada no Porto Verão Alegre. Nesta entrevista, concedida em um café da Cidade Baixa antes do evento, Abrahão salienta que vivemos em uma cultura que burocratiza a vida e nos coloca como escravos de processos inventados pelo homem. As pessoas precisam fugir do sistema para serem mentalmente saudáveis, ele defende.
Como ocorreu a criação da campanha Janeiro Branco?
Eu era professor de história e sociologia na rede particular de ensino e pensava se manteria ou não meu emprego, uma dúvida normal para professores em dezembro. Percebi que estava angustiado com a possibilidade de desemprego e que a gente não para de falar de ansiedade. Me dei conta de que novembro era azul para o câncer de próstata e percebi que não havia mês para saúde mental. Janeiro foi escolhido porque é um mês em que as pessoas pensam muito sobre a própria vida por conta do Ano-Novo, que é visto como fechamento de um ciclo. O branco é um somatório de todas as cores, e a folha em branco nos desafia a criar. Criei um grupo de WhatsApp com psicólogos de Uberlândia (MG), fizemos reuniões e propus para irmos a lotéricas, restaurantes, rodoviária, aeroporto, hospitais, igrejas e praças para abordar as pessoas nas ruas. A partir daí, a campanha se espalhou para outras cidades, virou lei municipal e estadual e, com a internet, chegou a outros países – primeiro em Angola, depois Japão, Holanda, Irlanda, Colômbia, Portugal, Estados Unidos e México. Espalhou-se como água no deserto. Criamos o Instituto Janeiro Branco para manter parcerias e buscar recursos. A campanha é descentralizada, ainda que tenhamos princípios, como mantê-la laica, plural, progressista e humanista.
O filósofo coreano Han Byung-chul diz que vivemos a sociedade do cansaço: nossas doenças mentais decorrem do excesso de positividade e da exigência de desempenho. O que fazer diante disso?
Para entender, podemos citar dois clássicos da sociologia: Max Weber e seu conceito de burocratização da vida, e Karl Marx, com o conceito de mercantilização e alienação da vida. Quando se entra no processo de burocratização, seres humanos se tornam reféns da jaula da razão, que é a obsessão por racionalidade, produtividade, eficiência e previsibilidade do mundo. Há um apego a normas e métodos – por isso, “burocratização”. Por consequência, eliminamos de nossas vidas a espontaneidade, a originalidade, a leveza e o imprevisível. Fantasiamos que podemos ter controle sobre tudo, e essa fantasia machuca as pessoas. A ditadura da previsibilidade e da eficiência elimina dimensões importantes da condição humana, como subjetividade e criatividade. Se tudo é controlado pelo relógio, pela calculadora e por métodos que visam à eficiência, onde entram ócio, descanso e demandas da subjetividade? Se passo por um processo emocional, mas sou submetido a processos racionais e burocráticos, há uma incompatibilidade. Como amar no moedor de carne? Há eliminação da subjetividade, uma negação de si mesmo. Fico carregado de sentimentos, mas não posso levá-los ao trabalho, porque preciso render. Se você estiver apaixonado e sofrendo de amores, precisa ficar concentrado porque deve produzir. Aí você nega as profundas dimensões da subjetividade.
Por causa da pressa, estamos tentando simplificar a realidade. E a realidade é complexa. Há um profundo e doentio processo de burocratização da vida. Por outro lado, as pessoas estão percebendo esse adoecimento e buscam alternativas.
O quanto a urgência que costuma se impor no dia a dia condiciona a forma como nós vemos o mundo?
É uma das raízes da ansiedade, porque você vive sob a pressão do relógio. Essa é a burocratização de que Max Weber fala: calculamos tudo. Quanto tempo tenho? Criamos um sistema existencial de eficiência e produtividade e eliminamos as dimensões de espontaneidade e da liberdade criativa. Isso nos adoece. Ser humano é, essencialmente, ter potencial criativo.
Como o senhor encara respostas que vêm sendo dadas a essa situação, entre as quais estão a popularização do mindfulness e do vegetarianismo, a ocupação do espaço público e a preocupação com o ambiente?
São reações. Existe um sistema social opressor, então o ser humano reage – de forma individual e também coletiva. Procuramos alternativas para usar nossa criatividade, senão a gente enlouquece. São válvulas de escape: férias, meditação, busca de sentido.
Uma forma de encontrar saúde mental é, então, aplicar a criatividade que não seja regida pela lógica do sistema?
Uma das possibilidades de defesa da saúde mental é lembrar que o ser humano é potência criativa. Se damos vazão, estamos em um movimento que gera resistência contra opressões que querem nos enjaular e nos transformar em mercadoria.
O que o senhor recomenda às pessoas no dia a dia?
Oficinas de arte, de artesanato, teatro, meditação, caminhada, tai chi chuan, ioga... São exercícios em que a pessoa olha para si e exerce trabalhos de criatividade em um processo em que ela mesma imprime ritmo, cor e forma. Ela tem o controle, não sofre controle de fora. A pessoa pode se inserir no mercado em vista de se sustentar, mas há saúde mental onde ela vê sentido e é proprietária de si mesmo. O importante é buscar o reencontro.
E quem sofre com um dia a dia estressante, mas não consegue se desvincular dele – não pode, por exemplo, largar o emprego que o oprime?
Enquanto psicólogo clínico, uma vez atendi a uma procuradora de Justiça com a reclamação de que não via mais sentido na profissão. Eram prazos, demandas externas e ambiente de trabalho esterilizado. Durante o processo terapêutico, ela redescobriu que amava a profissão, mas a maneira como o trabalho era exercido tinha roubado esse desejo. Ela pediu demissão? Não. Imprimiu ao ambiente de trabalho o eu dela: decorou a sala com artesanato, mandalas e varais de poesia, colocou música ambiente e criou um espaço até para trazer o animal de estimação. Buscou reconexão consigo. E aí podemos citar Nietzsche: “Quem tem um porquê suporta qualquer como”.
As pessoas estão mais insatisfeitas com suas carreiras e mais intolerantes com os percalços do que no passado ou isso é efeito geracional?
As duas coisas. Mas é preciso fazer um preâmbulo: por causa da pressa da vida, estamos nos transformando em seres que tentam simplificar a realidade. Ou oito, ou 80. E a realidade é complexa. Simplificá-la é um erro. Há um profundo e doentio processo de burocratização da vida. E aí as pessoas fazem o que não querem. É emprego sem sentido, relacionamento sem sentido, comer sem sentido, vestir-se sem sentido, transar sem sentido. Por outro lado, as pessoas estão percebendo esse adoecimento e buscam alternativas. Fazem igual à procuradora e, frente à perda de sentido, tentam colocar o seu eu no ambiente de trabalho. Já outras resolvem de forma inadequada, com dependência química, ansiedade e medicamento. Não é à toa que há mais farmácia sendo aberta do que escola.
O que a banalização dos remédios diz sobre nosso momento?
Inversão de valores sobre onde está o sentido de viver. Lidamos com remédios como o fazemos com mercadorias. Cria-se uma cultura de que todo comportamento desviante é ruim. A derrota é tida como uma doença dentro de uma sociedade de competitividade – portanto, os derrotados precisam tomar remédio. Quem não atinge metas precisa se medicar, como se isso fosse uma patologia. Se a norma é ser heterossexual, “quem é gay precisa de remédio”, como vemos com a discussão sobre a “cura gay”.
Depressão afeta desde os mais vulneráveis até os mais ricos. A saúde mental é cheia de tabus porque nunca falamos sobre isso. Precisamos ter discussões. Carências, frustrações e medo são democráticos, estão em todos os espaços.
Nossa sociedade é regida pelo princípio da meritocracia e do “american dream” brasileiro, segundo o qual basta o esforço individual para dar certo. Como isso afeta a saúde mental de quem não corresponde às expectativas?
Isso gera ansiedade generalizada, depressão, fobias, transtornos alimentares e de autoimagem, além da perda de sentido. É justamente esse o tema da peça TOC. Por isso é importante termos arte, que escancara aquilo que a gente não vê nas entrelinhas. A arte, e a comédia também, têm um papel terapêutico. Na sociedade da eficiência, a arte mostra que nem tudo é burocrático. A arte nos vira do avesso.
O atual momento político do Brasil é motivo de adoecimento para muitos. Qual a relação entre política e saúde mental?
Política é o exercício de poder e o meio pelo qual os homens criaram estratégias para solucionar convergências e divergências. Se não respeitamos as divergências, criamos espaços para adoecimento mental. O espaço político é o espaço da diferença. Se não respeitarmos as diferenças e os espaços para suas manifestações, o humano não pode exercitar aquele potencial criativo. Precisamos de espaços saudáveis na política. Hoje, há muitas violências – simbólicas e reais.
As redes sociais são apontadas como nocivas, nesse sentido: há radicalização e formação de bolhas. Como as redes afetam nossa saúde mental?
Redes sociais têm potencial de adoecimento. Elas monopolizam nossa atenção. Você pode ter, mas desative as notificações. Há, também, a fantasia da vida plena, com postagens sobre sucesso e alegria. A vida não é só plenitude. E há a fugacidade: elas funcionam em ritmo de tela corrida. Você posta algo agora e, em 30 segundos, outra pessoa postou algo novo. Tudo é muito efêmero. Vivemos de maneira superficial e nos alimentamos da ilusão do controle total da vida e da plenitude. Redes sociais diluem o presente porque tudo vira passado rapidamente. Ao não estarmos presentes, perdemos o sentido. Se estou preocupado com o meu Instagram, não estou presente aqui contigo. Eis outra questão que observo: hoje, crianças trocaram desenhos animados por assistir, no YouTube, a outros jovens jogando e narrando. Só que, aqui, não há uma direção do conteúdo. Xuxa e Eliana tinham um diretor de conteúdo, que filtravam o que apareceria. Quanto aos youtubers, no entanto, não sabemos o que eles pensam, tudo o que falam, o que venderão em seu discurso. Além disso, acaba um vídeo e, cinco segundos depois, começa outro, dando a impressão de que nada nunca vai acabar. É a ilusão da disponibilidade integral, de que tudo o que quero eu terei.
O quanto os sofrimentos por saúde mental são vividos de forma diferente conforme a classe social?
Há sofrimento em qualquer dimensão social. Depressão afeta desde os mais vulneráveis até os mais ricos. A saúde mental é cheia de tabus, porque nunca falamos sobre isso. O grande slogan do Janeiro Branco era “quem cuida da mente, cuida da vida”. Hoje, falo muito mais “por uma cultura da saúde mental”. Precisamos ter mais discussões. Onde há ser humano, há demanda. Carências, frustrações e medo são democráticos, estão em todos os espaços. Discordo do senso comum de que depressão é coisa de rico. Na verdade, o rico tem condições de lidar com a depressão, talvez em busca de tratamento, e o desfavorecido não tem por falta de políticas públicas.
Um grande problema no SUS é a baixa quantidade de centros de atenção psicossocial, os Caps (posto de saúde focado em questões mentais). Poucos psicólogos, poucos psiquiatras. Qual é o efeito disso?
Isso deteriora a vida do brasileiro. É papel do Estado garantir saúde da população. Estamos falando da precariedade do serviço público em relação à saúde mental. Mas é preciso contextualizar a importância da Carta de Bauru, um documento de 30 anos atrás a partir do qual psicólogos brasileiros se posicionaram contra a cultura manicomial (de internar pessoas em hospitais psiquiátricos). Até então, saúde mental era tratada como assunto para manicômio na sociedade brasileira.
Como o senhor vê a nova política nacional de saúde mental implementada no governo Michel Temer, de voltar a abrir vagas em manicômios?
Privilegiar a visão de internação, com verba liberada para instituições que encarceram, é um retrocesso. A partir da Carta de Bauru, começou um processo de reforma psiquiátrica que abriu, dentro do Sistema Único de Saúde (SUS), uma visão de que saúde mental se trata em liberdade. Saúde mental não é prender e cercear a pessoa, e sim ser tratado no contexto das relações sociais da família. É um grande avanço. De 30 anos para cá, a psicologia brasileira luta para consolidar isso, o que pressupõe ver a saúde mental em uma perspectiva aberta, baseada nos centros de atenção psicossocial. Caps não são para aprisionar nem prender, mas para lidar com a subjetividade das pessoas em um contexto de socializá-las. Tudo o que vá contra essa perspectiva progressista e humanista significa um retrocesso. Desde o governo Temer, percebemos uma dilapidação dessas conquistas. À medida que se retiram recursos financeiros, isso problematiza o funcionamento dos Caps. Sem dinheiro, como se estrutura a rede? É um ataque ao humanismo da reforma manicomial. Para políticas conservadoras, é mais fácil aprisionar o indivíduo do que empoderá-lo. A campanha Janeiro Branco coaduna com a luta antimanicominal. Ideologias de internação compulsória atentam contra as liberdades individuais. Mas isso não significa que não existam recortes: não podemos, em nome dessas liberdades, excluir a possibilidade de quem precisa da internação para se proteger e proteger a família. Não podemos generalizar. Há situações em que sujeitos precisam da internação, como para quem está em crise de abstinência de drogas (a lei da reforma psiquiátrica prevê internações em casos de crise aguda por limite de tempo determinado). Mas não é uma ideologia do manicômio. São casos pontuais, em que, às vezes, é preferível internar o sujeito. O que não é possível é levantar bandeiras de liberação ou aprisionamento geral. O ser humano é complexo.
Estatisticamente, pessoas negras e LGBT+ têm mais índices de depressão, ansiedade e tentativa de suicídio. Qual a relação entre racismo e LGBTfobia com saúde mental?
Machismo, racismo, fundamentalismo religioso, homofobia e transfobia são violências simbólicas e concretas que retiram dos indivíduos o direito de serem quem são e de viverem de acordo com seus próprios sentidos. Isso aprisiona os indivíduos em sistemas de opressão e de privação de direitos. É óbvio que isso afeta seus sistemas emocionais, levando à ansiedade, à depressão e à ideação suicida. A relação entre violências e saúde mental é inversamente proporcional. Quanto mais violências os indivíduos sofrem, menos saúde mental expressam. E quanto menos violências fazem parte de suas vidas, mais espaço para saúde mental terão. É fácil entender porque minorias étnicas, sexuais, políticas e religiosas, dentro de sistemas opressores, sofrem muito, o que causa deterioração na saúde mental.
Em muitos casos, a saúde mental só é alvo de atenção quando chega a uma situação extrema, como depressão, fobia ou transtorno obsessivo-compulsivo (TOC). Que sinais no dia a dia indicam que é preciso parar e repensar a vida?
Justamente, o Janeiro Branco não é uma campanha para estimular psicoterapia, mas para gerar uma cultura da saúde mental no dia a dia. Há vários sinais: transtornos alimentares, insônia, falta de harmonia com meu próprio corpo, desesperança, agressividade com familiares, no trânsito e no trabalho, além de adoecimentos recorrentes, como dor de cabeça, gastrite, tensões musculares. São sinais de que não estou bem e preciso repensar. Será que minhas escolhas são saudáveis ou são adoecedoras? Se estou nervoso, ansioso, agressivo, desanimado, chorando ou rindo à toa, talvez haja problemas para olhar. E é preciso ver se sou útil à minha sociedade. A própria Organização Mundial da Saúde (OMS) entende saúde mental quando estamos em equilíbrio com as demandas internas e sociais. Será que o individualismo e o egocentrismo não são adoecimento emocional e sinal de desequilíbrio interno?