Uma das figuras que têm aproximado a filosofia de uma linguagem cotidiana e atraído mais pessoas para pensar sobre a realidade, Viviane Mosé mescla um tom de desesperança a uma inveterada busca pela alegria em suas opiniões. Ao fazer um balanço de 2019, analisando o “estado de espírito” com que chegamos ao final de um ano difícil, a filósofa – e psicóloga, e psicanalista, e escritora, e poeta – alia o desamparo ao otimismo: foram meses difíceis, o dia a dia tem sido complicado para todos, mas não é lamentando que vamos chegar a algum lugar. Ela propõe que a população celebre, viva, reafirme a sua alegria, a sua arte. Capixaba de Vitória, autora de livros como Nietzsche Hoje e A Espécie que Sabe, ambos versando sobre a vida contemporânea e discutindo os desafios globais, “tentando facilitar a compreensão desse abismo em que entramos”, como define, ela concedeu a seguinte entrevista, por telefone, a GaúchaZH.
Este foi um ano difícil no Brasil: houve a tragédia em Brumadinho, o incêndio no alojamento dos jogadores da categoria de base do Flamengo (Ninho do Urubu), o massacre em Suzano, o vazamento de petróleo nas praias do Nordeste, os incêndios na Amazônia... Depois de passar por tudo isso, em que estado de espírito nos encontramos ao final de 2019? Como se recuperar? Com que perspectivas chegamos a 2020?
É um final de ano muito tenso com tudo o que a gente viveu, que você com toda a razão descreve como difícil em todas as áreas: ambientais, humanas, sociais, no que diz respeito a direitos humanos, à educação. Houve grandes retrocessos sociais e políticos. O Brasil entrou, em 2019, em um barco desgovernado. A gente não teve uma direção. Tivemos desgoverno em todas as áreas. Pessoas incapazes de ocupar os cargos que ocupam. E isso é muito ruim em um país tão grande quanto o Brasil. O Brasil é uma potência mundial. E não pode uma potência mundial, com grandes conquistas como a gente teve nos últimos 30, 40, 50 anos – temos mais ou menos 50 anos de cidadania, se a gente pensar bem –, de respeito humano, e não só isso, de economia, de estabilidade política, estabilidade financeira, um Brasil visto como grande no mundo inteiro, com a diminuição da desigualdade, de repente se ver em um barco desgovernado.
De que maneira todos esses fatos influenciam na forma como chegamos a este final de ano? O quanto isso afeta nosso dia a dia?
Imagina um transatlântico – porque não somos um barco, nós, o Brasil, somos um transatlântico enorme – absolutamente desgovernado. É a sensação de todo o brasileiro. É como estamos nos sentindo enquanto coletividade. Quando os direitos humanos, por exemplo, são suspendidos, ou pelo menos quando a gente não se sente mais garantido por direitos humanos mínimos, prepondera a violência. Porque o ser humano não nasce humanizado. Ele se humaniza no grupo. No Brasil, nós vivemos um 2019 de desrespeito aos direitos humanos, de desrespeito ao meio ambiente. Quando as leis são desrespeitadas, todas as pessoas se sentem desprotegidas. Um parte se sente desprotegida. E a outra, exatamente a que está sendo desrespeitada nos direitos humanos, por exemplo, ela pode se sentir disposta a tudo. Se não respeitam os direitos mínimos de sobrevivência seus, das pessoas da sua família, das pessoas do seu entorno, do seu bairro, se você se vê atacado por balas, por agressões verbais, por qualquer coisa, por falta de saneamento, por uma animalidade, aí entende-se que algo primitivo acaba aparecendo.
Não dá para ignorar o que acontece na coletividade em que estamos inseridos. ‘Ah, não vou me informar.’ Mas é impossível não se informar. Quando você abre sua rede social, não é amizade que se troca ali, não. Ali se troca política. É impossível estar na rede social sem estar contaminado com o que está acontecendo. E estamos em um momento difícil. O que espero para o Brasil sair disso, em 2020, é transparência. Justiça é o que o Brasil merece.
A paixão com que estamos lidando com os fatos políticos e com cada mudança econômica é benéfica para a nossa saúde mental, para o nosso bem-estar? E, por outro lado, está certo quem prefere ficar de fora de toda essa discussão, agindo de modo mais neutro? Há um melhor caminho?
Não dá para ignorar o que acontece na coletividade em que estamos inseridos. Não dá para ignorar o preço da carne. Não dá para ignorar tudo o que a gente vive hoje. “Ah, não vou me informar.” Mas é impossível não se informar. Mesmo porque vivemos na sociedade da informação. Quando você abre a sua rede social, não é amizade que se troca ali, não. Ali se troca a venda de produtos, se troca política. Nossa vida é a rede social. É impossível estar na rede social sem estar contaminado com tudo o que está acontecendo. E o que está acontecendo é que estamos em um momento extremamente difícil. O que eu espero para o Brasil sair disso, neste ano que vai se iniciar, é transparência. Justiça é o que o Brasil merece em 2020. Que o Poder Judiciário tenha coragem de enfrentar o abismo que ele precisa enfrentar neste país. Que não vai ser fácil. O Poder Legislativo já teve a sua crise. O Poder Executivo teve, tivemos um impeachment. É preciso que o Poder Judiciário restabeleça no Brasil o que é justiça. Que restabeleça parâmetros mínimos para julgar as pessoas. A gente não pode simplesmente olhar o Brasil, como a gente está olhando, vendo o país cair nesse abismo, e dizer: “Não, não tem jeito”. Quem vai fazer alguma coisa? É preciso que aconteça alguma coisa. A única coisa que o Brasil merece em 2020 é rumo. Seja qual for, sabe? Que alguém dê um rumo. Porque não dá mais para a gente manter essa destruição das instituições, das relações humanas, políticas, sociais. Não tem como não se envolver com isso. É impossível.
Voltando um pouco à metáfora do transatlântico brasileiro: os tripulantes, a sociedade, conseguiriam dar um rumo para isso? Ou não temos esse poder de realmente colocar a embarcação no caminho?
Diante de grandes crises, nós não devemos trabalhar com a reatividade, e nem com a resistência. Não é hora de resistir ao que está acontecendo. É hora de afirmar algo novo. É hora de dizer “sim”. Sim, nós somos um grande país. Sim, não nos identificamos com o discurso fascista que cresceu em nossa sociedade. Não é isso que é o Brasil. Tem isso no Brasil, mas nós não precisamos nos identificar com isso. Sim, eu gosto da vida, eu gosto do mundo, eu gosto da praia, eu gosto do Carnaval, eu gosto do jazz, eu gosto da bossa nova. Eu gosto da alegria. Eu gosto da vida. É isso que o Brasil tem que fazer neste final de ano.
Como?
Nós precisamos voltar a viver. Reafirmar o corpo e a alegria. Olhar adiante pensando, com clareza e certeza: isso vai passar. O Brasil continuará. Esse momento ficará apenas como uma mancha na nossa história. Isso que está acontecendo não vai destruir o Brasil. De jeito nenhum, de nenhuma forma. O Brasil é muito maior do que essa marola, que no momento parece um tsunami. É uma marola. Esse momento ruim que a gente está vivendo, um momento de desgoverno, com pessoas incapazes ocupando altíssimos cargos na hierarquia, esse momento tão ruim que a gente está vivendo vai passar. Porque não é isso que nos caracteriza. A gente vai ganhar rumo de novo. E a gente vai passar por isso e ainda rir muito de tudo o que aconteceu. Apesar de todo o sofrimento que estamos tendo hoje... Defendo que a gente festeje. Que a gente faça um Réveillon lindo, cheio de corpo, de arte, de vida. Porque as pessoas estão deprimidas. Elas estão sofrendo com tudo isso. Mas isso vai passar. Então é hora de a gente afirmar a vida. Afirmar o corpo, afirmar a arte. Isso é uma coisa que o Brasil sabe e pode ensinar para o mundo todo.
Por que a arte, que tem sido muito atacada, é tão importante nesse momento?
A arte é o impulso dos corpos. Se você perde alguém que ama por abandono ou por morte, é uma dor insuportável. Muito insuportável. Mas, no momento de luto, de maior sofrimento, a gente precisa expressar o que sente. E, na hora em que você consegue expressar o que você sente por meio da música, por exemplo, que é algo muito marcante – ou de qualquer outra arte, do poema... –, quando você consegue expressar seu sentimento, você continua sofrendo, mas ganha um extra de vida e alegria, que é a capacidade de expressar. Nós nascemos para nos expressarmos. Quando a gente expressa o que sente com muita potência, a gente ganha força, ganha alegria. A dor da perda não diminui, mas ela se equilibra. Então a nossa perda está lá. A nossa dor, todo o nosso sofrimento com esse ano tão ruim, não apenas com política, mas com tudo isso que você citou, com Brumadinho, que foi uma coisa horrorosa, o Ninho do Urubu, com tudo o que a gente passou neste ano, com toda a dor humana, existencial que a gente tem nesse momento, a gente precisa exatamente de uma alegria extra, sabe? E é por isso que existe a arte. Para que a vida seja possível para o ser humano. Porque, se a gente tivesse consciência, e não tivesse arte, a vida seria horrível. Então vamos resgatar a arte. Por isso que ela está sendo atacada. Ninguém manipula um povo forte. E a arte nos dá força.
Produza a sua alegria, pessoal, individual, única, que te alegra. Quando você estiver se sentindo alegre, vai ver que vai ter vontade de estar com as pessoas, dividir isso com os outros. Ouvi uma música esses tempos, da Ludmila, que fala: ‘Uma taça de Chandon/ um calor no edredom’. Podia ter só o edredom. Não precisa o Chandon ali. A consciência de que a alegria está nas coisas simples nos faz viver melhor. Não precisa mais e mais.
E como encontrar a felicidade nesse contexto? Devemos buscá-la sozinhos ou é preciso algo mais amplo, um estado de bem-estar geral que nos torne mais alegres como um todo? É que não existe felicidade. A ideia de felicidade é inventada pelo consumo. Não tem felicidade. Felicidade é aquilo que você vê quando compra uma roupa na loja. Parece que aquilo vai te trazer alguma coisa, mas não vai trazer nada. Aquilo é só consumo. O que existe é a alegria. E alegria é boa compartilhada. Ninguém quer ser alegre sozinho. Promova a sua alegria. Quando você estiver muito alegre, vai ver que a primeira coisa que vai querer é dividi-la. É triste ser alegre sozinho. E a gente precisa produzir alegria a partir do indivíduo mesmo. Eu sinto alegria cuidando das minhas plantas. Eu tenho animais que amo. Amo a natureza. Costumo dizer que, para ganhar alegria, você tem que amar alguém ou algo que não vá embora, que não te abandone. Se você ama o mar, ele vai estar sempre lá, te dando um banho legal. Então produza a alegria, a sua primeiro, pessoal, individual, única, que te alegra. Quando você estiver se sentindo alegre, você vai ver que você vai ter vontade de estar com as pessoas, vai dividir isso com os outros. É isso que a gente tem. Trocar essa alegria. Especialmente das coisas simples. Agora, não busque a felicidade, por favor. O que é a felicidade? É um ideal. É um ideal eterno. Se você pensar bem, sempre tem consumo nesse ideal. Ouvi uma música esses tempos, da Ludmilla, que fala: “Uma taça de Chandon/ Um calor no edredom”. Podia ter só o edredom. Não precisa o Chandon ali. Já tem o edredom, tem o batom... A consciência da alegria nas coisas simples nos faz viver melhor. Não precisa mais e mais.
E conseguimos diferenciar uma alegria verdadeira daquela felicidade fabricada? Quer dizer, não basta sair de férias para estar feliz, não é passeando pela Europa que todos estarão verdadeiramente alegres... Para você ter uma ideia, o retorno das férias é o momento de mais busca por psicólogos, terapeutas. As férias são a pior época. As pessoas piram, se separam. A maioria das pessoas se separa em uma viagem para a Europa. Sonha com a viagem, mas volta de lá separado. Porque não é felicidade que a gente procura. A gente tem que entender que a vida é algo difícil. Mas também tem muita alegria. Então a vida é feita de ganhos e perdas. O alvo não é ser feliz, o alvo é aprender a viver. E tirar da vida mais proveito. Tira proveito da vida quem conhece a vida. Quem é um sábio. E não é preciso dinheiro para ter sabedoria. Agora, a civilização te promete felicidade. Ela diz assim: “Não se relacione com a vida. Não perca tempo. A vida é muito difícil. Não precisa sentir dor, não. Para quê? Toma uma medicaçãozinha e dorme, não tem insônia. Toma uma medicação de manhã e você vai se sentir melhor”. A gente tem que aprender que os sofrimentos e as perdas são algo que nos impulsiona adiante. Que fazem a gente crescer. O que é crescer? Não é ser maior para os outros. É ser maior para você. E o seu contorno psíquico será mais amplo. Um contorno, uma alma mais ampla é uma alma que se relaciona melhor com a exterioridade. Com o mundo, com a vida. A gente tem que buscar isto: grandiosidade de alma. E não ganhar do outro nos produtos, o que é muito baixo.
Temos visto um aparecimento maior da filosofia no nosso dia a dia. Muita gente, não só no Brasil, está ficando conhecida por essa área do pensamento. Essa popularidade chega a já configurar uma filosofia brasileira?
Espero que (a filosofia brasileira) não seja a do Pondé (Luiz Felipe Pondé, filósofo conservador). Qualquer outra, estou achando linda. Mas eu vou responder a sua pergunta. Sim, o Brasil tem desenvolvido, cada vez mais, o interesse pela filosofia, pelo debate, pelo pensamento. Os pensadores mais conhecidos levam multidões para um teatro. Na maioria das vezes, esse pensamento que tem sido levado é um pensamento superficial, mas é necessário que ele exista, porque para educar a grande massa da população é preciso que esse pensamento seja muito simples inicialmente. Mas é um pensamento que fisga as pessoas para outros livros. Então eu acho que está tudo correto. Acho muito bacana. Todos os pensadores mais conhecidos, que utilizam a filosofia, ou sociologia, antropologia, arte, que trazem esse debate e que têm uma multidão de seguidores, fazem um grande trabalho. Porque eles exatamente mostram às pessoas que o conhecimento é algo necessário. E dali em diante elas vão buscar livros mais elaborados. Tudo lindo. Agora, eu só não posso considerar nessa lista o Olavo de Carvalho e o Pondé. Eu não considero que esses pensadores tragam mais do que preconceito e desserviço intelectual.
Muitos filósofos da atualidade também são psicanalistas. Você identifica que está se formando um novo campo de estudo que converge essas duas áreas de conhecimento?
É que a psicanálise vive uma crise severa. Precisa rever todos os seus conceitos. A psicanálise não morreu, não é isso o que estou dizendo. A psicanálise é um corpo teórico altamente sustentável no sentido de partir de um trabalho muito consistente feito por Freud e por seus seguidores. Isso não é desfeito. Mas Freud só pôde ser capaz de ler o seu tempo. Até uma certa hora, uma certa medida. Ele traz algo que é universal, mas a partir de um certo momento do seu trabalho, ele é limitado pelo seu tempo. Que, hoje, é passado. Nós vivemos uma crise do humano. Nós vivemos a exaustão humana neste momento. Não temos mais a neurose como base da sociedade. Nós temos a perversão. Nós temos o ódio que reina neste momento. Na época do Freud, o ser humano era estável e neurótico. Então o sofrimento dele era não ter acesso à sua sexualidade. Porque vivia um período de repressão. Hoje, é exatamente o contrário. A nossa animalidade está aflorando. Nós estamos perdendo qualquer tipo de contorno. Então, a psicanálise necessita da filosofia. Porque a filosofia não é clínica – quer dizer, pode ser, em um caso específico, mas a filosofia pura que eu estou falando –, a filosofia em si, por ser uma sofisticação do pensamento, é mais aberta à inovação. Ela não tem um compromisso com o paciente, por exemplo. Ela tem mais liberdade. Então a psicanálise precisa da liberdade da filosofia para ousar no pensamento e reconstruir os seus modelos.