A poeta, psicóloga e filósofa capixaba radicada no Rio de Janeiro Viviane Mosé esteve na Feira para autografar seus livros Nietzsche Hoje, Nietzsche e a Grande Política da Linguagem e Política: Nós Também Sabemos Fazer, este em coautoria com Eduarda La Rocque, gestora em política pública e sua sócia no Usina Pensamento. Viviane também conversou com o público sobre a vida contemporânea a partir da pós-verdade, da sociedade em rede e dos novos poderes, temas também abordados nesta entrevista.
Existe um suprimento de versões disponíveis na internet em que cada um pode escolher a sua verdade?
Existe há muito tempo. E agora ele só se torna evidente. A gente vive a crise da verdade por algumas razões, uma é a mudança das mídias, então as mídias facilitavam a manutenção de algumas interpretações.
A mídia tradicional?
Não só a mídia, as relações de poder na sociedade. No modelo de gestão piramidal que acontecia antes da rede, você tinha um que mandava e controlava os outros, que obedeciam. Esse modelo se desfez. Mas o fato é que a verdade sempre foi uma barganha de manipulação, a verdade era de quem tinha uma boa editora. Então, por exemplo, se você quisesse saber a verdade você perguntava "onde que publicou este livro? Qual foi a editora?". Então, estar numa boa editora era garantia de um bom conteúdo. Estudar em uma boa universidade, conceituada, era uma garantia, sempre foi. Só que esse modelo, em princípio bacana e correto, era muito excludente, porque esse modelo privilegiava aqueles que tinham acesso. Hoje nós temos outra coisa. Hoje, um menino de 17 anos produz tecnologia que muda a história da medicina. E ele nunca estudou medicina. Isso rompe qualquer tipo de meio. As novas mídias que a gente usa não nasceram da universidade nem da ciência. Nasceram de uma tecnologia feita em garagem. Então nós vivemos num mundo em que, de fato, a verdade foi colocada em questão. Não é apenas um fenômeno de comunicação. A verdade perdeu o lugar. As editoras faliram. Nenhuma editora garante mais ninguém. Grandes pesquisas saem de pequenas universidades, não necessariamente de grandes, dependem do talento individual. Hoje, o talento individual aparece muito mais, assim como o ódio individual, a ignorância individual, a intolerância.
Então, é um momento grave de mudança de meios de modelos de gestão. O que era um raciocínio em linha, ser racional era seguir uma linha de raciocínio, hoje a linha virou rede. Um raciocínio tem muitas perspectivas. Hoje, você tem a informação. Ninguém é dono dela.
Mas isso é bom...
É bom, só que esse bom, para sair do anterior modelo em que tudo estava no lugar, mas de modo excludente, para um mundo em que todo mundo têm acesso a tudo, mas não aprendemos a fazer acordos, você tem o caos. Essa transição de um modelo fechado, piramidal e para poucos, para um modelo em que todos têm acesso depende de uma transformação do humano. E é isso que está acontecendo. As polaridades estão se arrebentando, em função disso você vira mais polarizado ainda. Porque quem está perdendo poder é que tá gritando. Nós vivemos um momento no mundo de reacionarismo, como a gente dizia na década de 1980. O que vivemos é um momento reacionário de quem tá perdendo poder não admitir perder e aí volta a usar forças, volta a usar armas, o discurso de controle. Como se hoje nós pudéssemos colocar de novo os filhos em casa respeitando os pais. Ou os alunos sentados respeitando os professores. Isso nunca mais vai acontecer, porque os alunos não precisam dos professores, eles têm que querer o professor.
Tem outra coisa que parece alarmar as pessoas que é a mentira, a inverdade ou a distorção sendo premiadas pelo mundo todo. Isso não causa um choque?
O maior caos contemporâneo, a nova guerra é a guerra da informação. Não é a guerra das armas a maior guerra, é a guerra da informação. Quem controla e manipula a informação é quem de fato vence. Isso está publicado em um dos livros que a gente está lançando nesta sexta-feira, eu estou lançando três livros. Um é Política – Nós Também Sabemos Fazer, onde há um artigo meu que se chama O poder e as redes. O que eu discuto ali – antes da eleição – é chamar atenção literalmente para a manipulação da informação. Então, a manipulação da informação é de forma afetiva, a gente está sendo mais manipulado nos afetos. Provocar desequilíbrio facilita a manipulação do sujeito desequilibrado. Hoje as fake news vêm antes de tudo para desequilibrar pessoas, depois elas são manipuladas. A manipulação da informação é muito mais antiga do que a gente está descobrindo hoje na política, ela nasceu para vender produtos. A maior manipulação da informação é levar você a fazer um bumbum novo mesmo podendo morrer! É o que acontece hoje.
Nós vivemos um momento na sociedade de crise do consumo, a juventude não queriam consumir tanto porque desgastava o meio ambiente. A gente deixou uma sociedade material por uma virtual, e na virtualidade não precisa comprar produto, ou seja, eu posso ser famosa com milhões de curtidas apenas com uma selfie estranha, não preciso comprar uma calça, uma roupa, eu posso dizer que eu tenho um calça sem ter, porque eu posso manipular a imagem. Houve uma crise do consumo no mundo todo e a gente pensou que ia mudar a relação do ser humano com o consumo.
Você se lembra a gente falou muito disso há dez anos, como o mundo ia consumir diferente, as relações eram mais sustentáveis. Acontece que neste momento de crise do consumo foi quando surgiram as grandes fake news, a grande manipulação de nós todos, para aumentar o consumo. Hoje, voltamos a consumir desesperadamente, especialmente medicação psiquiátrica, fármacos, todo o tipo de medicamento, nós estamos vivendo a maior manipulação de todas que é voltar a nos tornar consumidores compulsivos. E isso é um jogo que não é só para a política. A gente está vendo na política, mas a gente está manipulado por informação há mais de 15 anos, no Brasil, no mundo todo. Hoje, as relações de poder e dominação de uns sobre os outros acontecem produzindo a instabilidade afetiva dos sujeitos por meio de notícias falsas, por robôs. Instabilidade nos coloca todos à flor da pele, e à flor da pele somos movidos por escolhas políticas e de consumo. Esse é o nosso problema. Nós todos estamos intolerantes uns com os outros. Será que é à toa? Todos estamos instáveis afetivamente. Eu estou dizendo isso analisando o vazamento de dados do Facebook, que deixou tudo muito claro.
Eu fiz palestras no país inteiro o ano passado sobre fake news discutindo isso, eles tinham essa clareza.
MAs adiantou alguma coisa? O TSE parece que ficou perdido.
Absolutamente nada. Eu sou uma estudiosa que estava nos debates ensinando os procuradores o que era uma fake news porque eles não sabiam. Eles passaram a ter consciência pouco antes da eleição. Mas não tiveram nenhum monitoramento sobre isso. Nenhum.
Eles não previam a dimensão que poderia chegar?
Não. E nem querem admitir que isso aconteceu e predominou. Isso é um fato. Agora, os processos continuam. Mas imagina se daqui a seis meses, se a gente comprovar que realmente foi a fake news que ganhou a eleição, alguém vai tirar o eleito? Não vai. Eu não acredito que isso aconteceria. O que nós temos que ter com clareza hoje é que nós não somos quem a gente acha que é. A gente é manipulado. Neste dia de hoje, que tem uma semana da eleição, nós continuamos manipulados por jogos que a gente sequer percebe. Isso é o que nos polariza. A tendência é que a gente melhore construindo sistemas de filtragem – a gente vai aprender a fazer isso nas próximas eleições, não tenho dúvida –, mas especialmente enfrentando o desafio de deixarmos de ser eleitores e nos tornarmos cidadãos. Eleitor é passivo.
É um consumo?
Eleitor é consumidor.
Mas eu vejo otimismo na tua fala... O pesquisador Aviv Ovadya diz que vamos viver o "infocalipse", o momento em que o caos informativo vai ser tão grande que não vamos distinguir uma coisa da outra, e a verdade não vai importar mais. É uma visão pessimista...
Mas a gente já chegou a isso, eu não tenho dúvida! A gente está vivendo um caos da informação que pode nos levar a mortes graves no Brasil nos próximos meses. Nesse momento, o maior perigo do Brasil é um cidadão contra o outro. Nós temos pessoas que vivem em bolhas de informação, em que acreditam piamente que seu opositor violentou criancinha, matou mulheres. As fake news vão construindo nichos de informação tão contraditórias e tão perigosas, que quem está dentro de uma bolha dessas não precisa de um presidente ou de um ministro que o estimule a cometer violência. Nós já estamos lidando com bolhas de informação que se violentam. A gente está vendo isso acontecer na rua!
O perigo da bolha de informação por causa do algoritmo é que a pessoa tem certeza que a Terra é plana, ela tem certeza que homossexual tem que morrer, ela tem certeza que a esquerda mata criancinhas.
Ela fica ecoando dentro daquela bolha?
Exatamente. Essas bolhas continuam existindo independente das eleições, independente do presidente eleito estimular ou não isso. Isso é autônomo. Daí a violência entre as pessoas tendem a aumentar muito, gratuitas. Já vivemos um caos bem perigoso. Por isso, neste momento, a gente deveria buscar mais o acordo do que o conflito. Justamente o contrário do que está se buscando no Brasil hoje.
Mas eu tenho otimismo porque, apesar de ver uma forma muito nefasta e perigosa, o que eu sei que vai acontecer é que a própria rede vai criando sistemas de proteção. Porque esse tipo de coisa que aconteceu no WhatsApp coloca a credibilidade da própria rede em questão. Isso coloca em questão os bancos, porque, se você paga suas contas na rede, você confia na rede. Mas até quando? Então, escândalos de manipulação de dados colocam em questão o lucro que a própria rede precisa ter para existir. Quando você começa a trabalhar isso, o campo de força muda. Então, poderes que se beneficiam da credibilidade dos acordos em rede não vão permitir que a credibilidade em si caia. Aí ela vai se retroalimentando. A credibilidade que a gente dá ao dinheiro e à troca comercial tem que ser mantida, e é ela que vai manter a rede estável, não a busca por cidadania.
A credibilidade que é preciso ter é a crença na rede, na verdade da informação da rede?
A crença de que os meus dados que eu exponho não estão sendo manipulados no Facebook. Então, se eu acredito que o Facebook está manipulando e eu saio, muita gente sai, você tem ideia do prejuízo? A rede social é um lugar de negócios, de venda, não é só de amizade. Nós participamos de questionários, respondemos perguntinhas, nós deixamos os nossos dados. E se ninguém acreditar mais? A virtualidade se mantém pela credibilidade, só, não tem nada mais, não tem materialidade. É um acordo que nós estabelecemos de credibilidade, sabemos que tem, mas precisamos que ter uma base. E a base está sendo quebrada no Brasil, especialmente com o WhatsApp. Aconteceu nas eleições americanas, depois na saída do Reino Unido da União Europeia e agora no Brasil. Quantas dessas ainda vão acontecer para que haja um acordo internacional para a proteção dos dados? Isso vai acontecer. É inevitável, porque nunca vamos voltar para a materialidade, vai ser sempre virtualidade.
A reconstrução vai ter que ser virtual?
Uma autoproteção da rede, não porque estaremos pensando na boa convivência, porque no fundo é o lucro. Mas o lucro depende da virtualidade, acordos existem aí, então eu não tenho dúvida que os próprios sistemas de informação que precisam manter esta credibilidade vão criar sistemas de autoproteção. É como se a gente estivesse vivendo hoje uma pirataria. Não interessa para a própria rede ser manipuladora dessa maneira. Interessa que se tenha o mínimo de estabilidade.