Enquanto personalidades buscam nas redes sociais ampliar a comunicação com o público, o rabino Nilton Bonder tem uma aposta diferente: o livro. Porto-alegrense radicado no Rio que se tornou um dos mais conhecidos líderes religiosos do país, Bonder acredita que os livros oferecem uma relação mais profunda e duradoura do público com o que ele tem a dizer.
Após a bem-sucedida trilogia sobre a Cabala (A Cabala da Comida, A Cabala do Dinheiro e A Cabala da Inveja, todos pela Rocco), ele volta ao tema com o que chama de uma “série em livro”, aproveitando o formato popularizado na televisão e no streaming. São sete volumes curtos abordando questões como risco e cura (temas dos já lançados, respectivamente, Cabala e a Arte de Manutenção da Carroça e Cabala e a Arte do Tratamento da Cura, também pela Rocco) a partir de histórias da sabedoria judaica – motivo que trouxe o rabino, em novembro, à Feira do Livro da capital gaúcha.
Também neste ano foi lançado o documentário Alma Imoral, de Silvio Tendler, baseado no best-seller de Bonder que já havia sido adaptado para o teatro. Nesta entrevista, concedida por telefone, ele fala sobre a popularidade da Cabala, responde se já questionou a existência de Deus e comenta a simpatia de setores conservadores não judaicos com Israel.
No documentário Alma Imoral, há entrevistas com personalidades judaicas sobre como desenvolver a potência humana. Que tipo de transgressão precisamos fazer hoje para construir novas pontes?
O filme busca o que chamo de almas imorais. São pessoas que, em várias áreas, conseguem avançar as fronteiras da nossa sociedade. São pessoas corajosas, que fazem caminhos não trilhados. É um filme universal, apesar de as entrevistas estarem em torno de pessoas de identidade judaica. Muito da minha escrita também é assim: falar de uma coisa particular com uma dimensão universal. Essas pessoas são todas transgressoras de alguma forma. Pensam fora da caixa, são ativistas. São incômodas porque obrigam todo mundo a pensar e movimentam o que está estabelecido, atingem interesses. Essa força transgressora é fundamental. A acomodação e a tentativa de controlar as coisas têm sua função, mas, se não houver movimentos de rompimento, avanço, progressão, não há evolução.
A tradição judaica é fundada na ideia da lei, mas o senhor fala em transgressão. Como se dá esse paradoxo entre o que está estabelecido e a transgressão?
Parece um paradoxo, mas não é. Para que haja lei, é preciso haver constantemente uma reflexão sobre a lei. A vida é dinâmica. A lei pressupõe instrumentos que possam questioná-la, revisá-la, até mesmo romper com ela. Exatamente porque a tradição judaica tem o apreço pela lei e resguarda isso de maneira cuidadosa, também teve de criar um contrapeso. Os judeus muitas vezes parecem paradoxais, porque há os muito aferrados à tradição, a essa coisa da lei, do texto, e ao mesmo tempo a participação dos judeus está sempre muito viva e presente em tudo que é fronteira de novidade da sociedade, seja na ciência, na arte, no campo filosófico, no comportamental. Se se construir uma malha de leis tão fechada que feche os poros em relação à vida, isso levará à extinção. A resiliência da tradição judaica vem desse paradoxo que não é um paradoxo.
A Cabala adquiriu uma aura pop, com estrelas do showbusiness se dizendo praticantes. O que explica isso?
O interesse na Cabala se dá pelo fato de que o mundo hoje tem uma sede absurda por significado, sentido. Nossa vida foi muito ampliada. Temos hoje uma longevidade maior do ser humano e, acredite se quiser, temos mais tempo ocioso. Vivemos dizendo que não temos, mas é porque ficamos usando nossos aparelhinhos (celulares) no tempo ocioso que temos. Esse tempo ficou enorme porque a vida hoje tem muitas facilidades. Preenchemos a vida com um monte de cacarecos, de detalhes que ficamos olhando. A verdade é essa: a vida hoje nos oferece mais ócio do que oferecia no passado. Então, o ser humano hoje é carente de significado, de sentido. Daí não só a Cabala, mas uma série de formas de pensamento sobre a vida humana no sentido existencial ganharam importância. Toda forma de misticismo, práticas meditativas etc., tudo isso avançou e ficou até pop. Vivemos hoje e cada vez mais numa sociedade mais mecanizada, robotizada. Somos todos substituíveis. Isso gerou uma grande angústia existencial.
Isso tem a ver com a ideia de modernidade líquida, em que as certezas são pouco palpáveis. Vivemos em um mundo em transformação. As revoluções são rápidas por causa da tecnologia. Não só a Cabala, mas a religião em geral oferece um porto seguro?
Sim. Se, no início do século 20, tinha-se a visão de que Deus estava morto e as religiões, fadadas à extinção, o que se vê hoje é um renascimento das religiões. A religião pode ser um veículo de transmissão até mesmo de ignorância, quando as pessoas questionam certas realidades comprovadas cientificamente, mas não estou falando disso. Estou falando das comunidades, das redes que as igrejas, mesquitas e sinagogas formam e que são essenciais para as pessoas. Vemos pessoas humildes pagando o dízimo, mas pagam às vezes com mais prazer do que pagam o Imposto de Renda, porque se veem recebendo algo no nível comunitário que talvez seja mais importante para elas na dimensão da religião do que na dimensão cívica. Cada vez mais, o ser humano vai buscar não só o sentido, mas a sua humanidade. Nos transformamos em uma humanidade muito imediatista, individualista, baseada em concretudes, objetivos. As pessoas estão sempre perguntando: “O que você pode fazer por mim?”. Sempre pensam em que proveito podem tirar disso. E isso desumaniza profundamente a nossa relação com a vida. É curioso que as coisas simbólicas para um ser vivo são mais próximas da realidade do que as coisas literais ou às vezes científicas. O poeta fala ao ser humano de uma realidade mais verdadeira, mais real às vezes do que o cientista é capaz de falar. Há uma inteligência humana que não quer abrir mão dessa poética, dessa liturgia, dessa literatura.
A polarização torna mais complexa a busca da nossa humanidade, porque traz com ela a perda da escuta, ou seja, a perda da diversidade, da capacidade de acolher diferenças. isso é recente, dos últimos cinco, talvez 10 anos. e tem dimensão mundial.
Nos últimos anos, o senhor percebeu alguma mudança nos aconselhamentos que as pessoas lhe pedem?
Não apenas no Brasil, mas no mundo, tivemos alguns processos novos e de certa maneira preocupantes, que foram as polarizações, a tentativa de colocar as pessoas em rótulos de esquerda e direita, uma presença de ideologias em termos de conservadores versus liberais, lenientes versus os mais rígidos. A polarização torna mais complexa a busca da nossa humanidade, porque traz com ela a perda da escuta do outro e a procura de estar sempre ouvindo aqueles que pensam igual a nós, ou seja, a perda de diversidade, da capacidade de acolher diferenças. Isso é recente, dos últimos cinco, talvez 10 anos. E isso tem uma dimensão mundial. Esse é o aspecto mais regressivo.
Nesse momento de turbulência, qual é o papel de um líder religioso? E como é estar nessa posição?
Posso exemplificar isso com minha tentativa com a literatura. A série de livros que estou escrevendo tem como objetivo maior produzir reflexão. Quando estamos falando dessa perda de escuta, temos uma perda da dimensão de reflexão do ser humano. Quando ele reflete, ele pondera, questiona, gosta de ser mostrado quando está errado. Já o mundo polarizado gosta de estar certo. As histórias que estou escrevendo mostram o outro lado, outras formas de olhar a mesma coisa para que você possa auditar a si mesmo, questionar as suas certezas, suas verdades, e voltarmos a um lugar de maior tolerância. Certa vez, um senhor de idade me questionou: “Rabino, qual é a coisa mais importante na tradição judaica?”. Na hora, fiquei meio assim, porque fazer essa síntese é difícil (risos). Ele mesmo respondeu e me tirou do sufoco: “A coisa mais importante é saber que sempre pode existir outra maneira de enxergar as coisas”. Isso é lindo porque é a dimensão reflexiva, crítica, em que o ser humano enobrece a sua humanidade querendo aprender com os outros, conhecer o mundo, mais do que sedimentar em si as suas certezas já construídas. Essa é a função maior da religião.
O senhor recorre muito às histórias também em suas palestras. Qual é a potência das histórias, que outras formas de discurso não têm?
As histórias são fundamentais. Primeiro, porque toda história é reflexiva. Muitas pessoas perguntam: “Qual é a moral da história?”. Antes de ir para a moral, que talvez não seja nem a parte mais importante, a história convida você a entrar em uma narrativa. Ao fazer isso, você ganha uma multiplicidade de visões da realidade, porque a história nos tira do lugar simplificado do “sim” ou “não”. A história traz a pessoa de volta ao enunciado dos problemas, mais do que a deixa preocupada com qual é a resposta. Quem é o bom e o mau aluno na escola? O bom aluno é aquele que presta atenção no enunciado, que consegue permanecer no enunciado mais tempo antes de sair correndo para marcar a resposta certa.
Ninguém tem certeza (de que Deus existe), a não ser em um lugar dogmático, que em muitos sentidos é perigoso. Nem é esperado que alguém tenha essa certeza. A fé é uma construção pela vida, e a dúvida é fundamental para a fé.
Com a história, a pessoa sai de si e vê a questão como se estivesse ocorrendo com outro.
Ela se sente menos defensiva, porque a história não está falando sobre ela. Em algum momento a pessoa vai vestir o chapéu e pensar: “Está falando de mim”. Mas ela entra na história desarmada, porque é sobre outros personagens. O fato de que ali existe uma metáfora que se aplica à vida de todos nós vem em um segundo momento. A tradição judaica diz que, se eu falar uma verdade na cara de uma pessoa, aquilo é tão duro que ela vai fugir da verdade, mas se eu puser uma roupagem na verdade e a apresentar de forma metafórica, essa verdade vestida é algo que vai ser digerido.
Neste ano, o senhor lançou os livros Cabala e a Arte de Manutenção da Carroça e Cabala e a Arte do Tratamento da cura. De quais males precisamos nos curar?
Nesses livros, a coisa mais importante para mim é que a pessoa reconheça as várias dimensões que existem quando trabalhamos um sistema. Por exemplo, quando falo do risco, uso a metáfora da carroça. No livro, só uso histórias de carroça. Meu avô, que é gaúcho do Interior, era carreteiro, mascate. Trata-se de um empreendimento submetido aos riscos da estrada. O que é importante, para mim, é que as pessoas entendam que há níveis diferentes de problemas: a lama na estrada, o buraco, o revés, a escassez. Em todos os livros, tento trabalhar essa percepção de criar vários níveis para alguma coisa para você se entender melhor. No caso da cura, que é sua pergunta, é entender como tratamos a dor, o sofrimento, a solidão, o desespero. Tudo isso precisa de cura, mas em dimensões diferentes. Quando você trabalha com um sistema, é capaz de identificar áreas distintas de problemas que, por serem distintas, vão demandar resoluções diferentes.
O senhor segue apostando nos livros. Já pensou em produzir vídeos, aparecer mais nas redes sociais?
É uma tentação constante. Até porque o alcance dessas mídias é impressionantemente maior. Só que é um alcance líquido. Chega a milhões de pessoas, mas isso evapora de uma maneira que me incomoda. O livro, para mim, é uma construção, demanda um esforço do autor. É para sempre, ele não some. É uma responsabilidade. Do ponto de vista do autor, da solidez que tem o livro tanto para aquele que faz como para aquele que lê, é um contraponto a essa liquidez presente na nossa civilização. Eu me sinto mais feliz abrindo mão de alguns zeros a mais de audiência pela qualidade da leitura. Quando tenho acesso à opinião do leitor, vejo que o livro é algo que fica com ele para sempre. É um tijolo na construção que é a reflexão da pessoa. Tenho textos que viralizaram, e é muito legal ver que todo mundo leu e me viu, mas isso está mais para um espelho do que verdadeiramente para o meu interior. É muito mais uma construção do ego, do personagem, do que algo artisticamente produzido no meu interior. Minha experiência com o livro tem sido de uma permanência que me encanta para continuar escrevendo. Livros que escrevi há 30 anos continuam atuais e impactando as pessoas.
As pessoas esperam que um líder religioso tenha respostas para todos os problemas. Que respostas o senhor ainda não descobriu?
Praticamente todas (risos). Às vezes, as pessoas não vão ao rabino, ao terapeuta ou ao amigo em busca de uma resposta. Vivemos em um mundo onde todos temos acesso à informação, temos acesso a profissionais de toda ordem. Ninguém detém uma hegemonia sobre as respostas. A maioria das pessoas tem acesso e é inteligente o suficiente para chegar à mesma conclusão que eu. A única coisa que posso fazer a mais é me valer de uma tradição sapiencial que existe atrás de mim. Tenho 60 anos, li a vida até o capítulo 6, digamos assim. Não li o 7, o 8 e o 9, que constituem a longevidade possível hoje. A tradição é o acúmulo de pensamento, de sabedoria daqueles que leram o livro centenas de vezes. Tenho isso à disposição, mas o mais importante é que a maioria das pessoas não busca uma resposta. Elas buscam a escuta. Quando às vezes alguém me liga num momento muito difícil ou, Deus o livre, diante de uma tragédia, preciso entender o que essa pessoa quer, entender que ela não está pendido para eu explicar por que o carro bateu. Ela está pedindo para eu escutá-la, para eu reconhecer que o problema dela é muito difícil. Quando alguém traz uma questão dessas, a maioria das pessoas tende a dizer: “Não é tão ruim, pelo menos você ainda tem isso e aquilo”. Ou seja, tenta relativizar o problema das pessoas. Isso não é uma escuta, não consola uma pessoa. O que consola é o reconhecimento. Às vezes, basta dizer: “É muito difícil mesmo. Que difícil o que você está vivendo”. E estar presente, acolhendo o problema dela, em vez de rejeitar e tentar minimizar o problema. Muitas vezes, a resposta não está em uma solução. Está na capacidade de ir para dentro do enunciado do problema.
Houve algum momento em que o senhor duvidou da existência de Deus?
Sou de uma tradição que diz que Deus não existe (no sentido material), que não se apresenta sob nenhuma forma. Então, quando dizem que Deus não existe, Ele não existe neste sentido: não consigo ver, escutar, tocar, ter uma experiência direta com Ele nos sentidos humanos. O trabalho espiritual do ser humano é refinar sua sensibilidade para encontrar um Deus que é vivo, mas que não existe. No coração da Bíblia, quando Deus se apresenta, Ele diz: “Não tenho forma, não me representem por nada. Portanto, não existo na dimensão material. Existo como a fonte viva de tudo que se manifesta e existe no mundo”. Como todas as pessoas, também tenho de ficar lutando contra os meus sentidos, que constantemente me dizem: “Não existe”. Mas a minha sensibilidade diz: “Ele é vivo, é a fonte de tudo que é vivo”. Essa espiritualidade é sempre uma prática. Ninguém tem essa certeza (de que Deus existe), a não ser em um lugar dogmático, que em muitos sentidos é perigoso. Nem é esperado que alguém tenha essa certeza. A fé é uma construção pela vida, e a dúvida é fundamental para a fé.
A comunidade judaica tem desde conservadores a liberais. Mas essa identificação ideológica com o Estado de Israel, criando certo rótulo ideológico para o que significa o Estado de Israel, não é uma coisa boa para a comunidade judaica.
Hoje, vemos muito o uso da religião por políticos e pessoas em situação de poder. Como as pessoas podem se vacinar contra isso?
Isso sempre existiu. A religião sempre foi uma área de poder. Há cem ou 200 anos, o dono do jornal, da TV, do Facebook era a religião, que se espalhou como uma organização. Ela tinha a palavra e, com ela, mandava a mensagem que queria. Sempre foi uma área fundamental do poder, do uso da informação. Dito isso, hoje estamos em um lugar muito melhor do que jamais estivemos. A religião sempre foi mais manipulada, era associada ao Estado, era um braço do poder, das elites. Ainda é, mas talvez menos do que no passado. Progredimos. Existem muitas áreas da religião que são progressistas, que questionam a própria religião. As religiões perderam essa autoridade de impedir o dissidente. Então, as vozes são múltiplas. Apesar de continuarmos tendo manipulação. Temos visto a religião islâmica ficar refém de indivíduos que a interpretam de maneira incorreta. Vemos também certas igrejas no Brasil que são intolerantes e querem se fortalecer em oposição a outras manifestações legítimas de religiosidade. São fenômenos deploráveis, mas essa era a norma no mundo das religiões até muito pouco tempo atrás. Hoje, são as exceções. E são muito mais identificáveis do que no passado.
No início do ano, o presidente Jair Bolsonaro cogitou mudar a embaixada brasileira de Tel-Aviv para Jerusalém, em um contexto de aproximação de setores conservadores não judeus com o Estado de Israel. Como o senhor vê esse movimento?
Foi prejudicial para a comunidade judaica, que é diversa e tem valores humanistas. A comunidade judaica tem desde conservadores a liberais. Mas essa identificação ideológica com o Estado de Israel, criando certo rótulo ideológico para o que significa o Estado de Israel, não é uma coisa boa para a comunidade judaica. A história dos judeus é de uma minoria sempre muito ameaçada. É um povo que tem registro de perseguições horrorosas. Ainda temos gente viva da época do Holocausto. Há uma vulnerabilidade dos judeus e de Israel, então há uma tendência a abraçar qualquer apoio. Mas esse é um apoio perigoso, porque contempla uma série de proposições que não acredito que sejam valores profundos da tradição judaica. A cidade de Jerusalém é essencial para os judeus, mas isso ser apresentado com nuanças ideológicas não é algo saudável.