Por Jorge Barcellos
Historiador, doutor em Educação pela UFRGS
A morte de Agnes Heller, no dia 19 julho, encerra a trajetória brilhante de uma filósofa e ensaísta mundialmente premiada. Por que sua obra é importante? Por duas razões: sua contribuição à renovação do estudo da História e por sua obra conter chaves fundamentais para a compreensão da realidade política contemporânea.
Vamos à primeira razão. Heller ficou conhecida dos brasileiros por O Cotidiano e a História. Nesse livro, ela apresenta suas reflexões sobre um novo objeto superando a interpretação esquemática do marxismo. Após a Revolução Húngara de 1956 e o Maio de 68, ela produziu algo excepcional, uma teoria moral marxista: volta ao jovem Marx da “busca do mundo perdido da ética” e escreve Aristóteles y el Mundo Antiguo e O Homem do Renascimento, localizando nesse último o substrato da ética definida como “pluralidade das formas de vida” a partir do momento em que vê que a relação entre indivíduo e contexto histórico tornam-se fluidos.
Heller foi a primeira a colocar uma pergunta para a esquerda – “O que desejamos?” – como base de sua teoria moral. Para a filósofa, o valor guia é o da sociedade socialista. Desejamos os ideais de liberdade, igualdade, fraternidade e comunidade que atravessam toda a sua obra. Sua teoria moral está materializada nos livros Instinto, Agressividade e Caráter e Teoria dos Sentimentos, nos quais combina análise social de inspiração marxista com as concepções antropológicas dominantes nesse século até a teoria freudiana. Sua visão sistêmica dos instintos, sentimentos, pensamentos, teoria da personalidade e moralidade humana concebe o homem como ser criador, autônomo, livre “que não renúncia ao prazer de viver”.
Em Além da Justiça, Heller defende o conceito da “vida boa da pessoa correta” e da “ vida que vai além da justiça e suas normas”, isto é, defende como princípio a retidão de caráter, sim, mas o desenvolvimento de capacidades contra a dominação e a exploração. A profundidade nas relações pessoais e de igualdade também fazem parte de seu projeto ético-antropológico.
Em História y Futuro, lança a pergunta “vivemos em um mundo de empobrecimento emocional?”, pois sabe que as emoções, como os afetos, podem ser boas ou más – “Não é necessário ser clarividente para apostar pela reaparição da cultura emocional”, diz Heller, referindo-se ao uso das emoções pela política.
Esse ponto nos leva à segunda razão da sua importância. Heller antecipou em 20 anos o centro da era da desinformação, na qual a emergência da emoção na política manipula os institutos, traz sentimentos a público da pior forma possível e na qual redes de WhatsApp revelam seu poder de manipulação da subjetividade. Por essa razão, sua leitura é fonte de crítica da política brasileira.
Heller procura a “vida repleta de sentido” onde não há contradição entre a vida cotidiana e a política. Seu ideal utópico é a busca das condições que garantem a democracia política. Não é isso que vemos ameaçado neste exato momento? Heller aprendeu com Maio de 68 que a revolução é mais do que a tomada do poder, que é preciso envolver a sociedade civil inteira e transformar suas formas de vida, o que a motivou a escrever obras como Sociologia da Vida Cotidiana, A Revolução da Vida Cotidiana e Teorias das Necessidades de Marx, obras nas quais constata que o indivíduo está tão alienado na sociedade do socialismo real da época quanto na do capitalismo avançado, e, por essa razão, propõe que o motriz da transformação social não sejam mais os interesses de classe, e sim as necessidades humanas. A partir de agora, as revoluções das formas de vida são tão importantes quanto das formas de propriedade, ela afirma.
Isso pode ser constatado com o confronto com suas últimas manifestações públicas. Heller estava preocupada com a virada autoritária do primeiro ministro húngaro Viktor Orban e o perigo que sua ascensão representava para a democracia na Europa. Sua análise serve para o Brasil de Jair Bolsonaro: “A questão é saber por que uma maioria se transforma em uma maioria, que tipo de ideologia influencia as pessoas a votarem em uma coisa e não em outra”. Trata-se de pensar com Heller se o Estado democrático de direito é capaz de sobreviver à emergência da extrema-direita: para a filósofa, o que não pode é um pais ser governado por um líder, por um partido ou por uma ideologia. Não é novamente a descrição do Brasil atual? Ela sentencia: “Acredito em algo: existem pessoas boas, sempre existiram e sempre existirão. E sei quem são as pessoas boas”.