Não há um manual único orientando e definindo como e quando surgem nas pessoas questões envolvendo as identidades de gênero e a orientação sexual, conceitos que costumam ser confundidos como sinônimos. A única certeza, segundo os especialistas, é que elas se expressam ainda na primeira infância e podem se transformar e se tornarem complexas ao longo dos anos, culminando, na maioria das vezes, na adolescência e na fase adulta. A família ou os responsáveis são fundamentais na jornada, para ajudar a lidar com medos e incertezas.
Foi o que ocorreu na casa do bailarino e auxiliar administrativo Gabriel Porto, 21 anos, de Porto Alegre. Autodenominado um homossexual com gênero fluido, ele teve inúmeras dúvidas durante o processo de afirmação de uma identidade de gênero e expressão da sexualidade. Foi a mãe, a dona de casa Carla Rosane Porto, 53, quem o encorajou a falar, quando ele tinha 12 anos. Mesmo admitindo ainda não ser fácil ver o filho usando maquiagens, por exemplo, Carla garante que o apoia nas próprias escolhas para demonstrar que o ama e está ao lado dele.
Com a estudante de Relações Públicas Brenda Cruz, 25, também da Capital, os questionamentos começaram na infância e aumentaram durante a pré-adolescência. Quando os pais descobriram, por acaso, que a filha gostava de se relacionar com meninas, o pai brigou com ela, e a mãe, a pedagoga Flávia do Evangelho, quis recorrer à religião para tentar fazê-la mudar de ideia. Hoje, Brenda quase não tem contato com o pai, que mora em outro Estado, mas é grande amiga da mãe.
Para o psicólogo Angelo Brandelli Costa, professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia e coordenador do Grupo de Pesquisa Preconceito, Vulnerabilidade e Processos Psicossociais da PUCRS, a sociedade ainda avalia de forma negativa as pessoas LGBT+.
— Na ausência de políticas públicas amplas de saúde, educação, garantia de direitos e proteção social, cabe também à família o papel de acolher esses jovens, auxiliando na criação de mecanismos de proteção e enfrentamento para uma sociedade que pode ser bastante hostil — aponta.
Já a psicóloga Jane Felipe de Souza, professora no programa de pós-graduação em Educação da UFRGS na Linha de Pesquisa Educação, Sexualidade e Relações de Gênero, ressalta ser impossível definir uma idade para que as escolhas se delineiem ou se revelem. O que os responsáveis têm de fazer, destaca, é acompanhar e entender como se dá o desenvolvimento da criança, em todos os seus aspectos, respeitando-a nos seus modos de ser, nos seus desejos, curiosidades, dúvidas e angústias.
— As famílias precisam entender que crianças brincam de qualquer coisa, desde a mais tenra infância. Não há uma "essência" que determine que meninas brincarão "naturalmente" de bonecas ou casinha e que meninos vão preferir carrinhos e bola. A sociedade tenta cercear a liberdade de ambos, determinando como devem se comportar, do que devem gostar, fazer, falar, pelo simples fato de serem meninos ou meninas. Há uma compreensão equivocada por parte das famílias, e também das escolas, confundindo identidades de gênero com identidades sexuais, que se evidencia através de um pânico moral expressado pelo temor de que os filhos sejam ou se "tornem" homossexuais.
Especialistas reforçam que homossexualidade não é doença e que o Supremo Tribunal Federal (STF) concedeu liminar cassando a decisão que permitia a prática de "reversão sexual", também conhecida como "cura gay".
Os pais, diz Jane, precisam se informar corretamente sobre os conceitos de gênero, sexualidade e orientação sexual, evitando preconceitos e sabendo ouvir, apoiar, amar e proteger:
— É esta a função principal das famílias.
Expectativa x Realidade
Os especialistas reconhecem que ainda há barreiras a serem derrubadas, como a ideia de que o filho precisa assumir perante os familiares seus relacionamentos afetivos e sexuais. Na casa de Brenda, essa conversa jamais ocorreu. Aos 15 anos, depois de incontáveis brigas com os pais, ela apresentou à família a primeira namorada. Com Gabriel, o assunto é tabu inclusive com o próprio namorado, de 30 anos, com quem está desde 2017.
A psicóloga e psicanalista Luciana Balestrin Redivo Drehmer, uma das coordenadoras do Laboratório de Sexualidade, Gênero e Psicanálise do Serviço de Atendimento e Pesquisa em Psicologia da PUCRS, entende que a construção da identidade de gênero e da orientação sexual é um complexo processo psíquico e deve ser acompanhado pelas pessoas mais próximas. Dessa forma, ao mesmo tempo em que as questões vão surgindo na criança e no adolescente, podem ser percebidas e reconhecidas pelos cuidadores.
Jane concorda com a colega e frisa não entender por que a pessoa precisa confessar o fato de ser homossexual, por exemplo:
— A gente vive numa sociedade que entende a heterossexualidade como compulsória. Em nenhum momento da nossa vida a gente precisa chegar para a família e confessar "Olha aqui, pai, mãe, eu sou heterossexual". Agora, se ela quiser compartilhar isso (a homossexualidade) com a família, falando abertamente, cabe à família apoiar, entender e dar todo amor e proteção possível.
Para Luciana, os pais depositam suas próprias expectativas nos filhos e desejam um destino a eles. Mas acabam se frustrando quando isso não ocorre como o planejado. Assim, a identificação de um possível gênero ou orientação sexual da criança pode despertar fantasmas.
Angelo Brandelli Costa afirma ser evidente a pressão social para que se cumpram determinados roteiros:
— Muitos pais acolhem essas expectativas e desejam que seus filhos as cumpram com receio de sofrerem eles mesmos preconceitos. Os pais precisam entender a autonomia do desejo dos seus filhos, no campo das profissões, da sexualidade, entre outros.
Salas de acolhimento em Porto Alegre
A PUCRS oferece todas as quartas-feiras, às 16h, em Porto Alegre, um laboratório especializado para indivíduos que possuam algum tipo de sofrimento psíquico por conta de sua sexualidade. O objetivo é oferecer apoio psicológico e acolhimento gratuito à comunidade LGBT+.
Desde o início de agosto, Porto Alegre conta com ambulatório para atendimento de saúde integral para o público LGBT+. As consultas são realizadas no Centro de Saúde Modelo, no bairro Santana, nas quartas-feiras, das 17h30min às 21h30min. O agendamento é feito pelo WhatsApp somente para moradores da Capital.