Assumir a identidade de gênero e a orientação sexual ainda é um desafio para adolescentes e jovens. Conheça as histórias de Gabriel e Brenda, que enfrentaram os próprios questionamentos e resistências em casa. Hoje, têm amor e apoio.
A história de Gabriel
Quem mais apoiou o bailarino e auxiliar administrativo Gabriel Porto, 21 anos, na decisão de assumir sua sexualidade e sua identidade de gênero foi o avô materno. O gesto arrebatou o rapaz, que não imaginava compartilhar com ele detalhes e dúvidas sobre as primeiras experiências sexuais. A mãe, a dona de casa Carla Rosane Porto, 53, admite que ainda não é fácil ver algumas atitudes do filho, mas garante aceitá-lo. Ambos fazem terapia e isso ajuda a mãe, a cada dia, a derrubar as barreiras que ainda considera intransponíveis, como ver o filho maquiado.
O começo
Gabriel
“Eu não sei dizer quando me descobri (homossexual). Acho que sempre fui descoberto. Acho que sempre existiu de forma muito natural. Quando eu tinha 12 anos, não me assumi para a minha mãe. Foi ela quem me alertou. A gente estava tendo uma conversa sobre os meus trejeitos, de eu ser muito afeminado e escandaloso. Ela disse: “Filho, o que tu tens para dizer a mãe já sabe há muito tempo’.”
Carla Rosane, mãe de Gabriel
“Desde muito pequeno ele já dava sinais. Ele tinha quatro anos e eu e o pai dele olhávamos e dizíamos ‘Gabriel, não rebola’. No histórico dele no jardim de infância, as professoras atestaram que ele tinha traços femininos. Procurei até o pediatra, na época. Com o passar do tempo, a gente foi deixando. Na minha concepção, achava que aquilo ia passar. Mas nunca passou.”
Entendimento
Gabriel
“A minha masculinidade existe em alguns momentos, assim como a minha feminilidade. Faz parte de mim, eu sou assim. Para me relacionar com meninos, por exemplo, não gosto de ser tão feminino. Agora, para dançar, para aparecer mais numa rede social, para me apresentar para as pessoas, prefiro ser mais feminina. Foi difícil para me entender. Eu cheguei a me questionar ‘o que eu sou?’. Precisava me questionar porque, quando voltava lá na infância, me lembrava de que não conseguia me encaixar. Nos meus 18 anos, tive um surto. Busquei impacto: ‘Vou usar a roupa que eu quero usar!’, ‘Se eu quiser botar a barriga de fora, eu vou botar!’. Fui meio afrontoso. Saía com glitter e cílios nos olhos, bem maquiada e a cara entupida de pó. E a mãe só dizia: ‘Tu tá horroroso! Tu parece um palhaço!’.”
Carla Rosane, mãe de Gabriel
“Não gosto nada de maquiagem. Eu tenho pavor! Isso me agride. Ainda é uma coisa que me causa impacto, mas eu espero que, em algum momento, passe. Para mim, seria mais fácil se ele fosse menino, se ele se vestisse como menino e namorasse menino. Porque acho que ele correria menos risco. Hoje, as pessoas querem o bendito do espaço, e as pessoas se expõem demais. Tu vais à Usina do Gasômetro e vê as pessoas dizendo que ‘tem de me aceitar porque eu quero namorar menina’, não se contentam em sentar uma do lado da outra e tomar um chimarrão. Estão ultrapassando o ponderável. O Gabriel já passou dessa fase. Eu acho. Não é fácil! Quando o gay é teu (filho), é outra conversa. A homofobia está aí. Morro de medo de que ele seja atacado.”
A família
Gabriel
“O povo (a família) sempre viu que eu sou afrontosa. Sei que tenho familiares com a consciência fechada, mas nunca me desrespeitaram na minha frente. Meu avô materno é maravilhoso! Já me socorreu em momentos em que nem eu acredito. Eu digo ‘Vô, vou te contar uma história absurda’, e ele diz ‘vem cá, meu filho’. As primeiras experiências contei apenas para o meu avô. Foi ele quem me levou ao médico. Ele parece todo conservador, mas no fundo é um doce. Na primeira vez que apareci maquiado, numa festa de final de ano da família, só quem ficou brava foi ela (a mãe).”
Carla Rosane, mãe de Gabriel
“O Gabriel é fruto de duas perdas. Eu tive duas filhas que perdi (uma no final da gestação e outra com quatro dias de vida), e ele é o filho do meio. Meu sonho era ter uma filha. Por perder as minhas filhas, eu superprotegi o Gabriel. A culpa que eu carrego, meu Deus! Acho que a minha superproteção acabou influenciando ele, porque eu fazia tudo o que ele queria e não botei limites. Não sei se ele mudaria, mas talvez se ele fosse o primeiro filho, as coisas seriam diferentes. Hoje, consigo aceitá-lo, mas é muito complicado.”
Consciência
Gabriel
“Não é complicado só para os pais entenderem. Muitas vezes, é complicado até para eu me entender. Nasci homem, mas tenho gênero fluido, tenho a minha feminilidade de forma natural. Quase não tenho roupa masculina no guarda-roupa. Divido roupa com a mãe. Consigo demonstrar quem eu sou: um menino feminino. Nem todo mundo consegue ter esta consciência, ir a fundo e se olhar no espelho e dizer: cara, tu é esta coisa estranha. Eu precisei olhar para mim e dizer: não tenho vontade de virar mulher, ter seios, mas não quero ser um homem viril. Sou meio a meio.”
Carla Rosane, mãe de Gabriel
“O que incomoda muitos é que o Gabriel sempre foi assumido. Ele nunca escondeu de ninguém, doa a quem doer, goste de mim ou não goste. Ele nunca se escondeu. Não fez questão de ter uma postura masculina para conseguir emprego. Ao mesmo tempo que esta iniciativa de ‘não vou disfarçar uma coisa que daqui a pouco não conseguirei esconder’ me tranquiliza, também me assusta.”
Proteção
Gabriel
“Eu nunca fui reprimido pelos meus pais nas minhas escolhas. Quando ocorreu, acho que foi mais pela proteção mesmo. Por amor.”
Carla Rosane, mãe de Gabriel
“O conflito está em não se aceitar ou a família não aceitar. Aceitar é proteger. A melhor coisa que tem! O não aceitar afasta. Se não aceito, perco o filho porque ele não deixará de ser quem é. Ele poderia estar na rua e longe de mim. Hoje, sei com quem ele sai, tenho o respeito dele e a amizade dele.”
A história de Brenda
A estudante de Relações Públicas Brenda Cruz tinha 13 anos quando os pais se separaram. Junto com a mãe, Flávia do Evangelho, e o irmão mais velho, ela passou a morar nos fundos da casa dos avós maternos. Flávia chegou a temer que os pais ficassem chocados com a orientação sexual da filha. Mas vieram exatamente do avô materno, que morreu aos 80 anos, em 2017, as palavras de carinho quando Brenda mais se sentia confusa.
O começo
Brenda
“Eu tinha uns seis anos e estava brincando de esconde-esconde com as minhas primas quando eu dei um beijo numa delas. Foi só isso. Essa é a minha primeira lembrança de beijar uma guria. O começo, para mim, foi muito estranho. Eu não sabia o que eu sentia porque era um assunto que nunca havia sido conversado. Não sabia que existia a palavra lésbica e não fazia ideia do que estava se passando comigo. Me perguntava ‘o que eu estou sentindo?’, ‘quem eu sou?’”.
Flávia, mãe de Brenda
"A Brenda tinha uns 11 ou 12 anos quando o pai dela a levou ao shopping para encontrar amigos. Ele resolveu segui-la e acabou flagrando de longe ela com uma menina. Ele voltou para casa e colocou a culpa em mim porque eu a deixava jogar futebol. Desde pequena, ela jogava muito bem no time da rua, e isso não tem nada a ver com a orientação sexual dela. Briguei com ela, disse coisas que não devia e a levei num psicólogo. Eu chorava: ‘Filha, por que você está fazendo isso com a mãe?’.”
Entendimento
Brenda
“Quando a gente é muito nova, a gente ainda não sabe. Você está naquela fase da puberdade e, quando vê, não sente atração por meninos. Comecei ficando com meninos, com 10, 11 anos, e era apenas ok. Mas a primeira vez que eu fiquei com uma menina foi uouuuu. Foi muito bom! Acho que, na época, passava uma novela que tinha duas lésbicas, e eu fiquei pensando sobre, mas não conseguia ligar uma coisa à outra.”
Flávia, mãe de Brenda
“Quando estou reunida com amigas ou colegas de profissão e ouço críticas à orientação sexual de alguém, não me sinto bem. A gente só sabe as coisas quando acontecem conosco. Um dia, me mudei para outra escola e havia uma professora (lésbica), e as colegas falavam mal dela. Tive que dizer ‘gente, eu tenho uma filha...’ e ficou um silêncio total. Acho que o ser humano, infelizmente, é assim. Só passa a entender quando é na carne e ocorre com ele.”
A família
Brenda
“Tenho pouco contato com o meu pai, porque ele mora em outro Estado, e a gente quase não se fala. Ele sempre viu isso (a orientação sexual de Brenda) de uma forma meio ruim, brigava comigo. Mas uma vez ele veio e me falou: ‘Só quero que tu sejas feliz e me desculpa pelas coisas que eu te falei e te fiz, o pai te aceita como você é’. Meu avô materno, ao contrário, sempre esteve ao meu lado. Uma vez, em um período meio rebelde meu, ele me procurou: ‘Só quero que tu saibas que a gente está contigo, não importa o que aconteça. Não precisa fugir e pode falar comigo’.”
Flávia, mãe de Brenda
“Nunca sentamos direito para conversar. Hoje, acho que era necessária esta conversa, porque quando eu brigava com a minha filha ela só dizia ‘mãe, te acalma’. Eu dizia ‘tu não vai ter uma família, ter filhos!’. Olha a minha ignorância. E ela dizia: ‘Tu não sabe se eu ainda não vou mudar’. Na família, ela foi bem aceita. Quando me separei, fomos morar com meus pais. Fiquei em desespero porque meus pais saberiam da Brenda. Para nossa surpresa, meu pai, que morreu há dois anos, veio e me disse: ‘Eu já tinha percebido isso, não se preocupa’.”
Consciência
Brenda
“Nunca deixei de fazer nada, nem me senti culpada pelas minhas escolhas. Não tinha como negar. Era uma coisa que só acontecia, e em nenhum momento eu quis restringir, me deixei permitir. Mas tive medo de falar com os meus pais. Não sabia como contar porque, no início, nem eu sabia dizer o que era. Só fui saber mesmo quando entrei no Ensino Médio, saí da minha bolha e vi que havia outras pessoas como eu. É compreensível o estranhamento da minha mãe porque ela vem de outro contexto e de uma outra educação.”
Flávia, mãe de Brenda
“Para a Brenda, as coisas sempre foram muito precoces. Ela sempre se resolveu sozinha, era bem decidida para tudo. O tempo foi passando e vi que não havia o que fazer. No início, o meu medo eram os outros, o que eles diriam. Depois, não eram mais os outros, mas ela. Porque eu pensava: ‘Ela vai sofrer, vão bater e podem matá-la’, ‘será que esta menina será feliz?’. Olha o pensamento de uma mãe. Depois, eu disse: ‘Por que não? Eu casei e não foi garantia nenhuma de felicidade, mesmo sendo um homem e uma mulher’.”
Proteção
Brenda
“É importante as famílias manterem este canal de conversa aberto. Se tiver o diálogo, as coisas não ficam tão obscuras na tua cabeça. O que não é falado é tido como algo ruim. A conversa tira essa ideia de que a pessoa está fazendo algo errado. Existem outras formas de se relacionar. A família (os responsáveis) deve procurar para conversar, manter um diálogo, entender e procurar informações sobre o assunto. Não há nada de errado. Então, não deve ser um problema.”
Flávia, mãe de Brenda
“Nunca busquei me informar mais sobre o tema. A única coisa que fiz foi tentar aceitar as coisas como são. Se Deus mandou pra mim, tenho de aceitar. E o que tem de ruim nisso? Nada! Eu tinha um pensamento fechado, só pensava no que os outros iriam pensar. Isso passou. Aceitar é proteger mesmo. Ela é minha filha e eu nunca quis ser um problema para ela. Tudo foi ficando mais claro e mais tranquilo. Hoje, a gente tem uma ótima relação. Vejo que ela é uma pessoa honesta, que trabalha, estuda e está indo atrás dos próprios sonhos.”