Suspenso temporariamente em 21 de fevereiro, quando chegou ao quarto dia de discussões, o julgamento sobre a criminalização ou não de condutas discriminatórias contra lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, pessoas trans e intersex (LGBT+) será retomado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na próxima quinta-feira (23). Ainda não há data prevista para uma definição, mas os ministros terão de decidir o que fazer em relação ao tema, que não está especificamente tipificado na legislação penal brasileira.
As ações em julgamento sobre a criminalização ou não de condutas discriminatórias contra lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, pessoas trans e intersex (LGBT+) pedem que a Corte declare o Congresso omisso em relação à homofobia e transfobia e enquadre as ofensas como crime de racismo, até que o Legislativo se pronuncie sobre o tema. É requerido, ainda, que a Corte fixe um prazo para o Congresso votar projetos de lei sobre o assunto.
Com quatro manifestações, todas a favor, e sete ministros ainda por votar, a Corte vai definir se pressionará o Congresso a legislar sobre os crimes contra LGBT+ no Brasil — e cogita-se até uma "lei temporária" do Supremo.
Confira o que deve mudar, em caso de aprovação das ações que estão sendo julgadas pelo STF:
O que seria passível de punição?
Nas ações em julgamento, Partido Popular Socialista (PPS) e Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros (ABGLT) pedem a criminalização de todas as formas de ofensa, sejam individuais ou coletivas, além de agressões, discriminações e homicídios motivados pela orientação sexual e/ou identidade de gênero, real ou suposta, de uma pessoa.
Uma lei contra a homofobia feriria a liberdade de expressão?
Esse é um ponto controverso. Quem é contra a criminalização da homofobia ou se opõe à sua inclusão na Lei Antirrascimo argumenta que, se todos são iguais perante a lei, dar o "privilégio" de criminalizar um discurso contrário à homossexualidade seria uma agressão ao Estado democrático e a um direito fundamental.
Todo cidadão tem a liberdade de ter o comportamento que desejar. Posso fazer piadas sobre portugueses, mas não posso fazer piada sobre homossexuais?
IVES GANDRA
jurista
Para o jurista Ives Gandra, doutor em Direito e professor emérito da Universidade Mackenzie, não seria adequado equiparar homofobia e racismo. Ele defende que "comportamento não tem nada a ver com raça".
— Em vez de procurarmos facilitar a convivência de comportamentos diferentes, vemos o discurso do ódio se exacerbando. Todo cidadão tem a liberdade de ter o comportamento que desejar. Posso fazer piadas sobre portugueses, mas não posso fazer piada sobre homossexuais? E, ainda que se admitisse esse critério, como se todos os gays fossem da raça dos gays, não caberia ao STF legislar a respeito — garante o advogado.
Os favoráveis à inclusão especificamente da discriminação por orientação sexual e identidade de gênero como crime defendem que qualquer pessoa pode se expressar de forma respeitosa, mas sem patrulhamento de consciência.
Como ficariam as religiões contrárias à homossexualidade?
Seguidores de algumas religiões temem que uma das possíveis consequências da criminalização da homofobia seja não ter mais liberdade de pregar contra a homossexualidade em templos, por exemplo. Com isso, entendem, teriam cerceada a liberdade de expressão por professar crenças contrárias à orientação sexual e identidade de gênero da população LGBT+. Diante das dúvidas, há quem defenda que os ministros do Supremo, caso julguem favoravelmente a ação, incluam uma ressalva na decisão para garantir a liberdade religiosa de pregar textos tradicionais, como a Bíblia.
O que defende quem acha que homofobia precisa constar na legislação como crime?
Advogados que defendem a criminalização destacam a inexistência de lei no Brasil que assegure proteção adequada para a comunidade LGBT+, ressaltando que em mais de 60 países há legislação criminalizando a chamada LGBTIfobia. Thiago Gomes Viana, representante do Grupo Gay da Bahia, cita o exemplo dos Estados Unidos — reconhecidamente cristão e defensor da liberdade de expressão —, onde a norma que tipifica os crimes de ódio criminaliza delitos motivados por religião, orientação sexual e identidade de gênero.
É inconteste que a homotransfobia se enquadra nesse conceito ontológico-constitucional de racismo.
PAULO ROBERTO IOTTI VECCHIATTI
doutor de Direito Constitucional e autor de ambas as ações que estão julgadas pelo STF
Para Paulo Lotti, autor da ação movida pela Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexuais (ABGLT), é esperado que o STF reconheça o dever constitucional do Congresso Nacional em criminalizar a homofobia e a transfobia, encarando-os como crime de racismo, na acepção político-social de raça.
O advogado explica que conceito político-social de racismo, fixado pelo próprio STF, é de "qualquer ideologia ou conduta que gere a inferiorização de um grupo social relativamente a outro, mediante uma artificial e ideológica construção social de hierarquia entre distintos grupos sociais".
— É inconteste que a homotransfobia se enquadra nesse conceito ontológico-constitucional de racismo — argumenta Iotti, doutor de Direito Constitucional e autor de ambas as ações que estão julgadas pelo STF.
O que defende quem acha que não deve haver lei específica contra a homofobia?
Considerando que o tipo de ofensa ou agressão a homossexuais que configuraria crime já pode ser enquadrado em outros tipos de práticas criminais, há quem entenda que a homofobia não deve ser especificamente incluída na legislação penal brasileira. Os advogados Walter de Paula e Silva e Cícero Gomes Lage, em nome da Frente Parlamentar Mista da Família e Apoio à Vida, consideram que há legislação suficiente para punir qualquer tipo de violência, "não sendo cabíveis quaisquer sanções criminais ou cíveis para punir a pluralidade e a livre manifestação de pensamento e ideias".
Presidente da Associação Nacional de Juristas Evangélicos (Anajure), Uziel Santana também afirma que todos os casos de violência contra homossexuais podem ser enquadrados em tipos penais como homicídio, lesão corporal e difamação.
O que defende quem acha que não cabe aos ministros do STF julgar esse assunto?
A questão é controversa. Câmara e Senado garantem que não estão se omitindo, mas os projetos de lei envolvendo a temática estão parados há anos nas casas. O advogado-geral da União (AGU) André Mendonça, mesmo declarando reprovação a qualquer tipo de conduta ilícita contra a liberdade de orientação sexual, entende que somente o Congresso deve legislar sobre matéria penal. E Fernando César Cunha, advogado-geral do Senado, afirmou que o Legislativo é o Poder competente para editar e aperfeiçoar leis que tratam de Direito Penal.
Representantes dos direitos LGBT+ afirmam, porém, que a criminalização da homofobia pelo STF é necessária porque todos os projetos favoráveis à comunidade que começam a tramitar no Congresso sofrem resistências por integrantes da bancada evangélica.
Ao expressar voto favorável à criminalização, o ministro Luís Roberto Barroso declarou:
— Se o Congresso atuou, a sua vontade deve prevalecer. Se o Congresso não atuou, é legítimo que o Supremo atue para fazer valer o que está previsto na Constituição.