Por Lúcio Antônio Machado Almeida
Filósofo, mestre em Filosofia do Direito e doutor em Sociologia do Direito
Existe um processo de humanização e, dentro deste, o que podemos definir como um movimento antidesumanização, que perpassa e se efetiva em grupos historicamente subordinados, em especial o das mulheres negras revolucionárias, as quais têm realizado uma transformação consistente e orgânica contra o modelo hegemônico do homem branco (in)civilizado.
Para Djamila Ribeiro, na perspectiva beauvoiriana de O Lugar de Fala, “existe um olhar colonizador sobre nossos corpos, saberes e produções”. Para além de refutar esse olhar, defende a filósofa, é preciso que partamos de outros pontos.
De modo geral, diz-se que a mulher não é pensada a partir de si, mas em comparação com o homem. Faz sentido: a humanização é um processo de choque com o pensamento vencedor do colonizador. Não estranhamos que as resistências a esse choque tenham surgido, defendendo os espaços de conforto nas narrativas do homem branco, da mulher branca e do homem negro. Estamos assistindo a um genuíno movimento social que tende a tensionar o discurso levando em conta as realidades do mercado do trabalho, com a estética normativa e com todas as práticas de redução da mulher negra.
Por outro lado, muitas estratégias do quadro de desigualdade racial no mercado apontam para saídas em que ambos os beneficiários, negros e negras, são tratados como se as situações vividas em tais ambientes fossem as mesmas. O homem negro e a mulher negra passaram a ser vistos como que pertencendo à mesma identidade social, ou seja, negros. Ocorre que tal estratégia acaba solapando um olhar mais cuidadoso sobre a real situação da desigualdade racial e de gênero no Brasil, fazendo com que a própria política de reconhecimento fique prejudicada, ou mesmo, como prefere Nancy Fraser, no artigo Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da Justiça na Era Pós-socialista, que “a divisão atual de trabalho assalariado é parte do legado histórico do colonialismo e da escravidão, que elaboraram categorizações raciais para justificar formas brutais de exploração”.
Essa análise, que também é histórica, fruto de um longo processo de dominação econômica e cultural, mostra-se presente em um ambiente democrático incipiente. O Departamento Intersindical de Estudos Socioeconômicos (Dieese) indica que esse ambiente “retrata a síntese da dupla discriminação de sexo e cor na sociedade brasileira: mais pobres, em situações de trabalho mais precárias, com menores rendimentos e as mais altas taxas de desemprego”.
Nessas condições, podemos compreender a permanência de uma condição – que é muito forte em países periféricos como o Brasil –, confirmada pelo Dieese, que indica que a proporção de negras com idade igual ou superior aos 10 anos, na população economicamente ativa, é substancialmente maior do que a de mulheres não negras*. Essa situação, advinda da normatização de um modelo econômico escravocrata, está em completo desacordo com as principais diretrizes dos direitos humanos na questão do trabalho.
Em Temas de Direitos Humanos, Flávia Piovesan analisa que há recomendações, no âmbito do direito internacional, para a promoção de políticas públicas de ação afirmativa para negras. A linha normativa que aprisiona a mulher negra é a mesma em todo o lugar no qual o poder masculino se fez presente. Entender adequadamente as esferas do poder masculino é lembrar que a mulher tende a ser sempre relegada a um lugar subalterno.
À precariedade da situação da mulher negra no mercado de trabalho** somam-se diversos fatores socialmente concomitantes, tais como o maior número de jovens negros mortos pela polícia, a estigmatização das religiões de matriz africana e, entre outros, o processo de branqueamento existente na sociedade. Por consequência, cresce a problematização da situação da mulher negra nos países nos quais a população de origem africana se faz presente.
Evidentemente, isso tende a ser mais dramático onde classe, gênero e raça convergem no processo de subordinação – caso do Brasil, país em que a mulher negra é sujeita a dois papeis próprios de subordinação social: o primeiro, o de ser negra, e o segundo, o de pertencer ao gênero feminino. Por esse motivo, é peremptória a existência de políticas de reconhecimento e que deem conta da sua especificidade social à luz da ética da proteção da diversidade humana. Logo, cotas raciais, tratamento mais detido na saúde e políticas de financiamento específicas para mulheres negras vão ao encontro do fortalecimento do ideário democrático, ou seja, a igualdade social de fato.
*Segundo o Dieese, no biênio 2004-2005, a diferença de intensidade nas taxas de participação da força de trabalho feminina foi maior em São Paulo, Belo Horizonte e Porto Alegre, nas quais a presença de mulheres negras foi superior em 3,6, 3,4 e 3,1 pontos percentuais à de não negras.
**Em Porto Alegre, o desemprego entre os homens não negros é de 11,9%, e, entre as mulheres negras, é de 25,7%.