Os conceitos de “família”, “feminicídio” e “higienismo”, a “teologia feminista”, a “lógica do sensível”, a “dominação masculina” segundo Bourdieu, a identidade “transgênero” a partir de Foucault. O Dicionário Crítico de Gênero, lançado originalmente em 2015, ganhou uma segunda edição, revista e ampliada, reafirmando-se como referência nos estudos do tema. São 162 verbetes escritos por 156 intelectuais de diversos campos do conhecimento, sob a organização dos historiadores Ana Maria Colling (doutora pela PUCRS) e Losandro Tedeschi (doutor pela Unisinos). ZH publica dois depoimentos que buscam dimensionar a importância da obra, agora disponível online.
Um livro que nasceu para entrar na História
Por Ana Carolina Coelho
Professora da Universidade Federal de Goiás
O Dicionário Crítico de Gênero é uma dessas obras ímpares que compreendem um grande esforço pessoal de dedicação e empenho dos professores Ana Maria Colling e Losandro Tedeschi e um certo consenso coletivo acadêmico da necessidade urgente de estabelecer e ampliar o vocabulário analítico do debate epistemológico dos estudos das mulheres, de gênero e das sexualidades. Gênero, durante algum tempo, significou as “lentes” teóricas pelas quais se podia legitimamente falar sobre mulheres na academia. Invisíveis nas narrativas históricas tradicionais, e em diversas pesquisas até hoje, a categoria de análise de gênero retira as mulheres de suas, até então, inexistências discursivas.
Mulheres negras, indígenas, homossexuais, pobres, brancas, criminosas, trabalhadoras, domésticas, artistas, putas, intelectuais, mães parecem “saltar” dos arquivos e fontes e povoar o passado. O reconhecimento de que “o pessoal é político” e de que a própria seleção e maneira de lidar com as fontes hierarquizava e elegia “quem” participava dessa escrita da História descortina definitivamente os chamados novos objetos, sujeitos e perspectivas para a construção de novos paradigmas para o conhecimento histórico.
Ao longo de 162 verbetes, que buscam reunir vocábulos de um referencial crítico em torno das principais pesquisas desenvolvidas no mundo acadêmico sobre as questões de gênero, mulheres e sexualidades, é possível observar a importância das interseccionalidades na compreensão das temáticas e do quanto a questão das mulheres amplia-se no entendimento da historiografia para efetivamente pensar nos campos das masculinidades e das sexualidades. É uma obra que visa estimular a reflexão crítica e possui uma beleza especial em termos de produção tão importante aos tempos atuais: a possibilidade da democratização do conhecimento, uma vez que sua linguagem é acessível ao público não especializado – dimensão cuidadosamente pensada pela organização – sem, por isso, perder o rigor acadêmico.
Bem mais do que reunir conhecimentos, o Dicionário Crítico de Gênero traça a história de um campo, apresentando em seus verbetes as discussões desenvolvidas sobre feminino/masculino, corpo, homossexualidade, honra, patriarcado, maternidade, misoginia e tantos outros, frutos de anos de reflexão e debate acadêmico e dos movimentos feministas. Uma obra de referência de cabeceira: daquelas que se consultam constantemente.
Uma obra digna de um campo
Por Leandro Colling
Professor da Universidade Federal da Bahia
O Dicionário Crítico de Gênero, que agora dispomos em uma segunda edição ampliada, é mais do que uma obra dirigida a especialistas nos estudos feministas. Trata-se de um trabalho essencial que demonstra o esforço científico de décadas de trabalho sério e responsável realizado por centenas de pessoas em torno das discussões sobre gênero e sexualidade no mundo. Nos dias atuais, quando as discussões sobre gênero estão sob o ataque de fundamentalistas e conservadores, no Brasil e no Exterior, essa obra assume uma importância ainda maior, porque condensa boa parte de um saber que não para de se desenvolver. E tudo isso é feito de forma didática e sintética, com linguagem acessível a qualquer pessoa interessada nos assuntos e com indicações de leitura para quem deseja se aprofundar em cada tema abordado a partir dos verbetes desenvolvidos.
Outro grande mérito do Dicionário Crítico de Gênero: o livro acompanha o desenvolvimento dos estudos de gênero e isso faz com que “gênero” seja entendido de uma forma bem ampliada e interseccionada com outros marcadores sociais das diferenças, em especial com as discussões em torno da diversidade sexual. Explico: por um certo período, os estudos de gênero estiveram bastante apartados dos estudos da sexualidade. Nos últimos anos, essa separação foi se diluindo e, hoje, o nosso campo de pesquisa se ampliou e se qualificou. Com isso, os então chamados estudos gays e lésbicos, por exemplo, tornaram-se cada vez mais também feministas. E os estudos de gênero, inicialmente mais voltados às mulheres cisgêneras, passaram a ser interpelados a tratar de sexo e sexualidade e acolheram estudos sobre as várias identidades de gênero que existem em nossa sociedade.
Ou, dito de outra forma, os estudos da sexualidade se generificaram, e os de gênero se sexualizaram. E por que isso ocorreu? Em função do desenvolvimento de estudos, cada vez mais complexos, sobre as relações entre sexo, sexualidade e gênero. Esses estudos evidenciaram que é impossível dissociar essas três dimensões. O resultado é que o sistema sexo-gênero se ampliou, e é louvável que o Dicionário Crítico de Gênero tenha captado essas transformações e, por isso, constituiu uma obra histórica e de referência.
O livro
Dicionário Crítico de Gênero
Organização de Ana Maria Colling e Losandro Tedeschi. Editora UFGD, 748 páginas, R$ 100 o livro físico em portal.ufgd.edu.br (no mesmo endereço, é possível fazer o download do e-book gratuitamente).