Quando a doutora Nancy se recostar em sua poltrona no espaçoso apartamento onde mora no bairro Rio Branco, em Porto Alegre, para curtir os velhos LPs de Elis Regina, Milton Nascimento e Chopin, certamente se divertirá com as lembranças guardadas ao longo da carreira. Nancy Tamara Denicol foi a primeira mulher a trabalhar com urologia no Rio Grande do Sul e uma das pioneiras no país – prestou prova para ingressar na Sociedade Brasileira de Urologia (SBU) em 1977 ao lado de uma médica paulista, nos primeiros passos femininos em um universo dominado por homens. Aposentou-se do Hospital de Clínicas de Porto Alegre no mês passado, aos 66 anos, quando recebeu flores e discursos emocionados de colegas, alunos da residência e dos pacientes mais chegados. Mas nem sempre foi assim.
Pode-se imaginar a surpresa dos colegas de profissão – e dos pacientes – na conservadora década de 1970 ao se depararem com uma profissional de 24 anos que, de todos campos da Medicina, voltou-se para a ciência que tem como um dos focos de estudo o pênis. Isso significava atender, entre outros casos, homens com problemas de impotência e disfunção erétil — até hoje tabus —, pouco afeitos a declarar suas dificuldades sexuais a uma jovem.
— Cansei de ouvir comentários jocosos — rememora. — Na residência, muitos colegas perguntavam se eu faria urologia pediátrica, simplesmente não acreditavam que eu trabalharia com adultos.
Foi abrindo espaço "com os cotovelos", como costuma dizer, aproveitando a amizade que tinha com alguns professores que a elogiavam pela coragem, até que conseguiu começar a atender em 1982. Mas as reações dos pacientes não eram muito melhores.
— Recebia pacientes que marcavam consulta no hospital mas não sabiam quem seria o médico. Mais de uma vez o sujeito entrou no consultório, viu que era uma mulher, se despediu e deu meia-volta — conta.
Mais de uma vez o sujeito entrou no consultório, viu que era uma mulher, se despediu e deu meia-volta.
NANCY TAMARA DENICOL
primeira mulher a trabalhar com urologia no Rio Grande do Sul
Havia os assanhados, claro. Certa feita, um senhor elegante de meia idade entrou no consultório e anunciou: que ela não se impressionasse com o avantajado tamanho de seu membro. Ao examinar o dito-cujo, viu que o paciente fora otimista demais.
— Quando ele voltou para a reconsulta, repetiu o discurso. Tive de dizer que ficasse tranquilo, pois no exame anterior ficara claro que o membro era bem dentro da média, nenhum centímetro a mais — diverte-se Nancy. — Depois disso ele passou a se comportar.
A médica se tornou importante porta-voz da inclusão das mulheres no mundo da urologia no país. Chegou a presidir a seção gaúcha da SBU de 2015 a 2016, quando colocou mulheres em todas as diretorias e avançou com campanhas para que mais médicas se especializassem em urologia — elas ainda são apenas 2,5% do total no país, afirma Nancy, com base em pesquisas da entidade.
Mais de 2,5 mil transplantes
Especializada em cirurgia, recebeu convite do Chefe do Serviço de Urologia do Hospital de Clínicas, Walter Koff, para integrar a equipe de transplantes. Nancy ajudou a realizar mais de 2,5 mil transplantes de rins em Porto Alegre ao longo de duas décadas. São nestes procedimentos que reside seu principal legado para a saúde – e também a razão de permanecer solteira e sem filhos.
— Quando se trabalha com transplante, não há final de semana, férias ou madrugada. Fica muito difícil cultivar uma família, mas é um caminho que escolhi e nunca olhei para trás — suspira.
Aposentada pelo hospital, continuará atendendo em seu consultório particular, mas com muito mais espaço para seus passatempos: ir ao cinema, ouvir música, ler biografias de personagens históricos e viajar. Não deixará de lado o protagonismo na urologia: juntou-se a colegas para organizar os próximos eventos e congressos da especialidade em Porto Alegre.
— As pessoas me perguntam por que, de tantas especialidades, escolhi a urologia. É uma pergunta que sempre me surpreende: a urologia é um campo muito rico, permite trabalhar em várias áreas, como a cirurgia urológica, que é uma atividade simplesmente maravilhosa — entusiasma-se, com o mesmo encanto que tinha ao iniciar a carreira, há quatro décadas.