Com sólida carreira acadêmica, o prodígio holandês Rutger Bregman acaba de se tornar também um best-seller. Ele é o autor de Utopia para Realistas: Como Construir um Mundo Melhor, livro lançado em mais de 20 países, incluindo o Brasil, que destaca a necessidade de grandes ideias para o avanço das sociedades. A utopia de Bregman não é um projeto estanque, completamente delineado, mas um mundo sem pobreza alcançado por propostas simples e ousadas. A principal delas é a renda básica universal, uma verba mensal garantida tanto para desempregados como trabalhadores. Da mesma forma, a redução de horas de trabalho é uma meta. Nesta entrevista, ele fala da viabilidade de implantação de suas ideias no Brasil.
Seu livro trata de temas ligados à ideia de progresso e de uma vida melhor. Você as apresenta em nome de uma utopia. Esse conceito não está desgastado?
Quero recuperar a palavra utopia. Restaurá-la. Se você reparar no que está ocorrendo há algumas décadas em todo o mundo, perceberá que perdemos a arte do pensamento utópico, especialmente depois da queda do Muro de Berlim. Com a derrocada do comunismo, muita gente pensou que havíamos chegado ao fim da história, que, para a esquerda, só havia restado evitar o surgimento de outro tirano, torcer para ter mais crescimento econômico ou assegurar uma taxa de desemprego baixa. Ou seja, a política se tornou tecnocracia. Não há mais grandes visões. No entanto, sob meu ponto de vista, se você olhar para o progresso que tivemos nos últimos dois ou três séculos, verá que cada passo desse progresso foi dado a partir de uma ideia maluca, que em um primeiro momento foi considerada irrealizável, fora da realidade, impossível. É por isso que inicio o livro com essa linda citação de Oscar Wilde: "O progresso é a realização de utopias". Nós precisamos de utopias. Se não temos utopias, também não temos progresso.
Mas muita gente morreu em nome de utopias.
É preciso distinguir duas formas de pensamento utópico. O primeiro é a utopia do projeto delineado, que começa geralmente com um homem dizendo: "Sei o que é melhor para o mundo, ouçam o que eu falo e tudo ficará bem. Temos aqui um mapa, um plano, e precisamos segui-lo. Se você não concordar... Bem, a gente pode começar arrancando uma de suas mãos". O mundo viu muitas destas utopias no século 21, como o comunismo e o fascismo. Também acontece na arquitetura. Repare em uma cidade como Brasília. Era também uma utopia, e se tornou uma distopia sob muitos aspectos. Não é esse tipo de utopia que quero restabelecer. É algo completamente diferente. Estou falando sobre realização, sobre o impossível se tornar viável. Não sabemos o caminho até a utopia, não temos mapas, por isso é necessário ser modesto e paciente. Teremos que experimentar no caminho. Mas sempre precisamos ser projetados adiante por energia e ambição utópicas. Precisamos dessa visão de para onde estamos indo. É claro que tivemos utopias terríveis no século 20, mas não podemos jogar fora a criança junto com a água do banho. Nós definitivamente perdemos algo sem as utopias. E é isso que busco retomar no livro.
Um ponto central do livro é a renda básica. você defende que o melhor caminho para acabar com a pobreza é dar dinheiro aos pobres, aos moldes do programa brasileiro Bolsa Família. Você o conhece?
Não sou um especialista em Bolsa Família, mas há consenso entre economistas e especialistas ao redor do mundo de que o Bolsa Família é um sucesso. É relativamente barato e tem grandes efeitos, no sentido de reduzir a pobreza, diminuir taxas de mortalidade infantil, aumentar o número de crianças na escola, entre outros. O Brasil tem uma grande oportunidade de expandir esse programa, que ainda é um projeto bebê de renda básica – poderia se tornar um projeto adulto. Atingir mais pessoas é um desafio. O Bolsa Família é algo revolucionário no mundo do desenvolvimento e da economia. Deve ser motivo de orgulho para os brasileiros.
Há consenso entre economistas e especialistas ao redor do mundo de que o Bolsa Família é um sucesso. É relativamente barato e tem grandes efeitos, no sentido de reduzir a pobreza, diminuir taxas de mortalidade infantil, aumentar o número de crianças na escola.
RUTGER BREGMAN
Historiador
Entre as críticas ao Bolsa Família, há o argumento de que a renda garantida desestimularia as pessoas a buscar trabalho, tornando o país menos produtivo. outro comentário frequente é que se trataria de uma medida populista, com fins eleitoreiros.
Esta última crítica é ridícula. A questão central da democracia é fazer o que a população quer. E aí, quando alguém faz algo para a população, vem alguém dizer: "Isso é injusto, desonesto!". Não faz sentido. Já o primeiro argumento é basicamente uma questão empírica. Temos que olhar para as evidências. Se fosse verdade que programas de renda mensal tornassem as pessoas preguiçosas e corruptas, eu seria contra. Mas li estudos e não encontrei sequer um trabalho científico que demonstre que isso seja verdade. Ao redor do mundo, há milhares de estudos sobre transferência de renda, do México à Índia, passando pela África do Sul. Estudiosos brilhantes dedicaram 20 ou 30 anos a isso. E toda vez que encontram pessoas que saíram da linha da pobreza, concluem que essas pessoas se tornaram mais produtivas e mais criativas. É um investimento que paga a si mesmo. Todos, no Brasil, seriam beneficiados se fosse investido mais nos pobres. Há capital humano extraordinário na pobreza, crianças que podem ser o próximo Einstein ou Leonardo da Vinci. Temos que dar oportunidades a elas.
Por que a renda básica precisa ser mais debatida?
Porque é uma das ideias mais promissoras de todos os tempos. Pode transformar verdadeiramente nossa sociedade. A curto prazo, é o modo mais eficiente e civilizado de fazer algo a respeito da pobreza. Você dá oportunidade às pessoas de trocar de trabalho, mudar de cidade, começar uma nova empresa, investir na sua vida, tornar-se mais útil e, assim, beneficiar outras pessoas. Além disso, ajuda a repensar como uma sociedade justa deve parecer.
Se fosse verdade que programas de renda mensal tornassem as pessoas preguiçosas, eu seria contra. Mas li estudos e não encontrei sequer um trabalho científico que demonstre que isso seja verdade. Ao redor do mundo, há milhares de estudos sobre transferência de renda, do México à Índia, passando pela África do Sul. Toda vez que estudiosos encontram pessoas que saíram da linha da pobreza, concluem que essas pessoas se tornaram mais produtivas e mais criativas. É um investimento que paga a si mesmo.
RUTGER BREGMAN
Historiador
Você fala em garantir renda básica não apenas para as pessoas mais pobres, mas para toda a população. Como pagar essa conta?
Permita-me uma pergunta diferente: como nós pagamos a conta da pobreza? Quanto nós pagamos por haver milhões de pessoas sem disponibilidade ou habilidade para investir em si próprias e se tornarem produtivas para as outras pessoas? Como pagamos por empregos idiotas? Quanto pagamos por haver gente de classe média e alta ocupada com trabalhos que pouco contribuem para a sociedade? Advogados de corporações, banqueiros, marqueteiros... Não digo que todos esses trabalhos não sejam úteis, mas muitos deles não são mesmo. Não sou apenas eu que digo isso. Muitas pessoas que trabalham nessas funções admitem isso. Elas precisam comer, amar, pagar as contas. Trabalhar em algo inútil às vezes garante isso. Podemos nos permitir a seguir vivendo desse modo? Não. Precisamos mudar. Sob esta ótica, a renda básica é um investimento – com retorno. Qualquer pessoa que investe em algo quer saber quanto receberá em retorno. Por que não pensamos na pobreza desse modo? Há estudos americanos recentes que demonstram que, se você investir US$ 1 no combate à pobreza, receberá de volta US$ 7. Costumo dizer que, se você não se importa com os pobres, tudo bem. Pode não ter coração, mas tem uma carteira.
Algumas pessoas atribuem o baixo desenvolvimento do Brasil a um suposto caráter indolente e malandro de seu povo. O que você acha disso?
Se você observar sob um ponto de vista biológico, brasileiros, holandeses e japoneses são praticamente iguais geneticamente. 99% do DNA é o mesmo. Se você quiser explicar as diferenças entre esses países em saúde, taxas de emprego, pobreza e outros quesitos, perceberá que não tem nada a ver com o povo, mas com as circunstâncias em que as pessoas se encontram, com as instituições, com a lei, com a história. Por exemplo, se você quiser explicar por que a América Latina tem uma desigualdade alta, como historiador, terei de falar sobre colonialismo. Isso não significa que não podemos escapar da história, que não podemos mudar as coisas. Vimos muitos exemplos no passado de instituições que mudaram. Tenho uma visão muito otimista da natureza humana. Porque essa visão é baseada na ciência, enquanto o pessimismo em relação à natureza humana é baseado em preconceito.
Você também propõe que as jornadas de trabalho sejam reduzidas. Essa questão é bastante discutida, a ponto de haver pessoas que propõem exatamente o oposto. Por que essa questão suscita isso?
Porque algumas pessoas são estúpidas, para ser curto e franco. Em alguns dos meus capítulos, demonstro com dados que países que reduziram as jornadas de trabalho se tornaram mais produtivos. A Holanda tem uma semana laboral reduzida e é mais produtiva do que o Brasil. A razão é simples: se você está o tempo inteiro cansado ou preocupado com sua saúde, não será alguém produtivo. De que adianta chegar ao escritório e passar o dia fingindo que está trabalhando? Uma semana de trabalho mais longa não é a receita para mais produção, mas para mais depressão. É algo que você encontrará em muitas pesquisas. Henry Ford, há cem anos, percebeu que seus funcionários seriam mais produtivos com uma jornada semanal de 40 horas, em vez de 60. Outra questão é que precisamos repensar o que é nosso trabalho. Gostaria que as pessoas fizessem mais trabalho não remunerado – cuidar das crianças, dos idosos, fazer trabalho voluntário etc.
Você acredita que sua utopia pode se realizar? Quando?
Não faço previsões. Isso é besteira. É possível ganhar dinheiro fingindo que prevê o futuro, mas meu trabalho não tem nada a ver com isso. Estou captando possibilidades, criando cenários. Este livro é um manifesto. É sobre coisas possíveis. Acredito nisso. Porém, nada acontecerá automaticamente. O que espero é que os brasileiros leiam e se inspirem, que tornem algo viável dentro do seu contexto. Para mim, ler um livro é como ler outra vida. Não tenho ideias do impacto desse livro no México, no Japão ou em outros países. Cada leitor tira dele o que acha válido. E isso é ótimo. É o que as ideias podem fazer. Ideias são contagiosas, se espelham pelo mundo. Nesse sentido, me considero parte de um movimento, pois há também muitas outras pessoas falando sobre isso neste momento.
Países que reduziram as jornadas de trabalho se tornaram mais produtivos. A Holanda tem uma semana laboral reduzida e é mais produtiva do que o Brasil. A razão é simples: se você está o tempo inteiro cansado ou preocupado com sua saúde, não será alguém produtivo. De que adianta chegar ao escritório e passar o dia fingindo que está trabalhando?
RUTGER BREGMAN
Historiador
Seu livro chegou ao Brasil no momento das eleições presidenciais. Em que sentido pode contribuir com esse contexto?
Em momentos como este, é muito fácil ser distraído pelos noticiários, pela loucura do dia a dia. Especialmente pessoas que se consideram progressistas: é muito fácil estar focado no que você é contra. Ser contra aquele cara horrível em quem você vai votar, ser contra o sistema, contra a homofobia, contra o racismo... Há muito contra o que se insurgir. O que é necessário, neste momento, é ser a favor de algo. Mudar o foco. É preciso parar de falar de todas essas coisas com as quais você está preocupado e começar a falar sobre as coisas a que você aspira, que deixam você empolgado. Faz bem.
É preciso retomar o discurso do sonho?
Sim. Ao redor do mundo, muitos políticos de esquerda se tornaram reacionários. Porque estão centrados apenas no que são contra. Ok, também sou contra muita coisa, mas esse discurso é chato, e também preguiçoso. Se você quiser construir um movimento, é preciso ser em torno de ideais positivos.
No livro, você afirma que a direita de muitos países tem conseguido "esticar os limites do extremismo". Há um risco da proliferação do fascismo no mundo?
Há um risco alto. Se você for ao Canadá agora, vai perceber que os canadenses estão falando sobre violência e armas o tempo todo. Isso é algo inimaginável, hoje, na Holanda, na Alemanha e na França. É claro que também houve populismo na Europa, mas essa conversa aberta sobre violência se tornou assustadora em outros locais. E, mesmo assim, as pessoas estão se acostumando a ela. É a trivialização do tema. Está ocorrendo nos EUA, com Trump. As pessoas estão se acostumando com a loucura e o besteirol que está sendo propagado.
É muito fácil estar focado no que você é contra. Há muito contra o que se insurgir. O que é necessário, neste momento, é ser a favor de algo. Mudar o foco. Parar de falar do que você está preocupado e começar a falar de coisas que deixam você empolgado. Faz bem.
RUTGER BREGMAN
Historiador
O combate à violência é uma pauta central no Brasil, assim como a homofobia e o sexismo.
No caso da violência, quando se apresentam soluções extremas – como dar imunidade aos policiais que matarem um criminoso em serviço –, o grande desafio é manter a sanidade e o diálogo. Porque, se por um lado são tempos sombrios, por outro, são tempos empolgantes. Muitas coisas estão se abrindo. Há homofobia e misoginia, não apenas no Brasil e nos EUA, mas, nesse caso, também na Europa, mas, ao mesmo tempo, o feminismo ficou mais poderoso do que nunca esteve. A ideia da renda básica já foi concretizada em diferentes lugares do globo. Tudo isso está acontecendo ao mesmo tempo. É o melhor dos tempos e, simultaneamente, o pior dos tempos. Nossa obrigação é defender as ideias com as quais nos importamos.
Você é um autor jovem, com ideias originais e que viaja o mundo por conta de um livro best-seller. Tem encarado muita resistência por parte dos colegas acadêmicos?
Sim. Se você não encontrar resistência, provavelmente não está escrevendo algo muito relevante. Tive muitas críticas honestas. Mas também há inveja nesse campo. De qualquer forma, me considero parte de um movimento. Acredito que meu livro captou algo que já estava pairando no ar. Se eu não o escrevesse, outra pessoa o escreveria.
Por que, em vez de defender suas ideias na academia, dedicar-se aos leitores leigos. Qual é a importância de participar do debate público?
Detesto a aristocracia intelectual. Detesto pessoas que falam e escrevem em uma linguagem que ninguém entende. Recentemente, me meti em apuros em um evento literário na Colômbia. Holandeses são conhecidos pela capacidade de serem diretos. Gostamos da sinceridade, o que é algo pouco usual em outros países. Em um festival em Cartagena, havia uma filósofa de Barcelona para debater meu livro. Ela falou por 25 minutos com termos como construtivismo, pós-modernismo, análise de discurso. No público, havia 400 pessoas interessadas em aprender. Achei injusto que elas tivessem pago para algo que não estavam entendendo. Então, quando o moderador olhou para mim e perguntou o que eu achava, fiz algo considerado bem holandês. Respondi: "Para ser honesto, não entendi nada do que ela falou". O público ficou chocado. Houve um desconforto geral. Mas fiz isso porque acho injusto alguém se posicionar como um alto intelectual, alguém que fala uma língua que ninguém entende e que deve ser considerado especial por isso. Está errado. É obrigação do escritor ser compreendido. Se um livro não for entendido, é culpa do escritor, e não do leitor.