Nesta quarta-feira (8), as mulheres argentinas voltarão às ruas. Como aconteceu em junho, no dia em que a Câmara de Deputados aprovou o projeto que legaliza o aborto no país considerando apenas a decisão da mulher, elas pretendem, aos milhares, tomar las calles para pressionar o Senado a mudar definitivamente a lei.
As brasileiras, que já viram o Uruguai, em 2012, permitir a interrupção da gravidez até a 12ª semana de gestação (até a 14ª em caso de estupro), espiam o movimento na nação vizinha com atenção, enquanto, por aqui, o Supremo Tribunal Federal (STF) realizou, na sexta-feira (3) e na segunda (6), audiências públicas para ouvir entidades pró e contra a descriminalização da prática.
O projeto argentino prevê a legalização do aborto até a 14ª semana de gravidez considerando a vontade da gestante – hoje permitido em casos de estupro e de risco à vida da mulher. Na Câmara de Deputados, a vitória foi apertada: 129 votos a favor, 125 contra e uma abstenção. A tendência é de que, no Senado, a votação também seja acirrada, para qualquer dos lados. Os senadores também poderão incorporar no texto a possibilidade de os médicos se negarem a realizar o procedimento.
Deputada pela Província de Corrientes – que faz fronteira com o Brasil pelo oeste do Rio Grande do Sul –, Araceli Ferreyra credita a aprovação na Câmara à força da mobilização popular, uma tradição social na Argentina que, dessa vez, contou com um engajamento inédito de diferentes classes sociais, religiões e posições políticas.
Em outras palavras, avalia a legisladora, conseguiu-se diversidade no coro de vozes à reivindicação, em parte porque a pauta do aborto foi retomada no rastro de um levante nacional contra o aumento dos casos de feminicídio na Argentina – um a cada 30 horas, segundo dados do governo – e teve como estopim a história de Chiara Páez, 14 anos, morta a pauladas pelo namorado de 16 anos e enterrada no quintal da casa dos avós do rapaz, em maio de 2015. Chiara estava grávida e, de acordo com a perícia, havia tomado um remédio abortivo antes de ser assassinada.
Então, o aborto como um direito encontrou aderência natural na luta pelo fim da violência contra as mulheres que desencadeou o movimento Ni una Menos, o principal articulador das marchas feministas.
— É uma revolução das nossas filhas, que denunciam a violência contra as mulheres e também a violência da clandestinidade do aborto, o último delito com estigma de gênero em que só a mulher é condenada — diz Araceli.
Cecília Palmeiro, doutora em Literatura, escritora e ativista do Ni Una Menos, lembra que projetos que propunham a legalização da interrupção da gravidez pela vontade da mulher já haviam sido apresentados pelo menos seis vezes no Congresso Nacional pela Campanha Nacional pelo Aborto Legal, Seguro e Gratuito, lançada em 2005.
É uma revolução das nossas filhas, que denunciam a violência contra as mulheres e também a violência da clandestinidade do aborto, o último delito com estigma de gênero em que só a mulher é condenada.
ARACELI FERREYRA
Deputada pela Província de Corrientes
A sétima apresentação foi acompanhada de uma paralisação feminista de mais de 800 mil mulheres em 8 de março. Há um outro fator que Cecília considera fundamental ao resultado:
— O debate sobre as questões feministas foi para a mídia, com muitas campanhas bacanas que levaram à aprovação da legalização por 60% da opinião pública. A população argentina está acostumada a levar às ruas um milhão de pessoas, mas, dessa vez, tivemos a combinação da pressão das ruas com o apoio da mídia. Isso foi muito importante.
A simbologia da mobilização demonstra que não é de agora que o direito das mulheres ao aborto vem sendo discutido no país. O lenço verde que coloriu a Avenida de Mayo, em Buenos Aires, foi criado há mais de 30 anos no primeiro Encontro Nacional de Mulheres (ENM) e popularizado pela Campanha Nacional pelo Aborto Legal, Seguro e Gratuito.
O ENM é como um Fórum Social Mundial feminino, com palestras de lideranças em diferentes frentes da luta feminista, da causa indígena ao tráfico de mulheres. Essa agenda antiga na Argentina é destacada pela psicóloga brasileira Rosângela Talib, integrante do movimento Católicas pelo Direito de Decidir. A construção da pauta por lá estaria baseada na conscientização e na informação das bases sociais, que, com o Ni Una Menos, ampliou-se em representatividade, abarcando apoio de atrizes populares, escritoras, jornalistas e figuras públicas de distintas vertentes ideológicas – inclusive na base do governo conservador do presidente Maurício Macri.
Em suas últimas manifestações, Macri indica que não vetará o projeto caso ele seja aprovado no Senado.
O deputado argentino Oscar Alberto Macias, também de Corrientes e um dos votos contra o projeto, argumenta que a vitória da legalização se deu pela falta de cumprimento de políticas públicas que envolvam contracepção e educação sexual na Argentina. Para ele, essa falha dos governos levou o país a considerar essa medida como saída:
— Teríamos de apostar mais na educação sexual, na conscientização sobre elementos contraceptivos. Isso está contemplado (nas leis), mas o governo não se acha responsável nem destina recursos. Não existe prática abortiva que seja 100% segura e creio que a legalização aumentará a proliferação de gravidezes indesejadas e dos casos de doenças sexualmente transmissíveis.
A deputada Araceli diz que os parlamentares argentinos conseguiram se distanciar de suas convicções religiosas. Apesar de ser uma nação predominantemente católica, com fiéis revigorados pela ascensão do papa Francisco (o primeiro pontífice sul-americano da história da Igreja), o Poder Legislativo do país não conta com uma bancada religiosa aos moldes do que se vê no Brasil. Antes da mobilização, afirma Araceli, muitos deputados sofriam pressão das igrejas e alguns chegaram a ser ameaçados por grupos radicais antiaborto.
— Isso, claro, acabava gerando uma indecisão entre os legisladores. Mas acredito que a maré verde fez terminar essas práticas antidemocráticas e, quando se superou este obstáculo, conseguiu-se uma votação com maioria na Câmara — analisa.
Na Argentina, como aqui, os políticos entendem que a defesa da legalização do aborto implica prejuízos eleitorais e, por isso, raramente levavam as discussões adiante. A ex-presidente da Argentina Cristina Kirchner, por exemplo, nem em campanhas, nem durante seu governo, manifestou-se a favor. No mês passado, de acordo com o jornal La Nación, ela admitiu que votará pela descriminalização da interrupção voluntária da gravidez até a 14ª semana.
Não existe prática abortiva que seja 100% segura e creio que a legalização aumentará a proliferação de gravidezes indesejadas e dos casos de doenças sexualmente transmissíveis.
OSCAR ALBERTO MACIAS
Deputado argentino
Aliás, há uma outra diferença importante entre Brasil e Argentina: a participação feminina no Congresso. No Brasil, segundo pesquisa divulgada em 2017 pela Organização das Nações Unidas (ONU), fica entre 10% e 14%. Na Argentina, está entre 35% e 39,9%, e há até uma mulher na presidência do Senado, Gabriela Michetti, do Proposta Republicana (PRO). A maior presença garante maior visibilidade ao tema, mas não se traduz necessariamente em maior apoio ao aborto: entre as cem deputadas argentinas, 50 votaram a favor da legalização, 49 foram contrárias e houve uma abstenção.
Vozes contrárias
Assim como ocorreu em junho (foto acima), manifestantes contra o aborto também devem ir às ruas. Sob o lema “Salve as duas vidas” e com slogans como “A morte nunca será uma solução”, os opositores da lei na Argentina também preparam manifestações com o apoio da Igreja Católica e de outras congregações religiosas (há rabinos e irmãs, por exemplo).
Números
Na Argentina, segundo o Ministério da Saúde, cerca de 10 mil mulheres são internadas, por ano, em razão de complicações por procedimentos abortivos inadequados.
Em 2016, foram registradas 43 mortes, sem contar os assassinatos de jovens por parceiros em razão da gravidez indesejada.