No final de 2011, seis dias depois de dar à luz o primeiro filho, Valquíria Sohne sofreu um acidente vascular encefálico (AVE). Esteve em coma, recebeu um prognóstico de poucos dias de vida e permaneceu dois meses internada, metade desse tempo na UTI. Contra todas as expectativas, sobreviveu, mas voltou para casa, em Igrejinha, no Vale do Paranhana, condenada a viver estendida em uma cama. Havia perdido a fala e os movimentos do corpo. Também as capacidades cognitivas, pensava-se.
Mas um dia, no começo de 2012, por acaso, a família descobriu que ela mantinha a cognição intacta. O cérebro ainda era o mesmo. Da cama, imóvel, passou a comunicar-se com o mundo apenas pelo piscar dos olhos. É um processo moroso, em que alguém recita o alfabeto e Valquíria precisa confirmar com as pálpebras, letra por letra.
Apesar dessa dificuldade, ela conseguiu, piscadela após piscadela, ao longo de mais de um ano de esforços, compor um livro sobre sua experiência, que já está pronto e deve ser publicado no segundo semestre, com o título Tudo Aconteceu num Piscar de Olhos.
Essa história mobilizou o Grupo Educacional Censupeg, do Rio de Janeiro, que dedicou sete meses de pesquisa em seus laboratórios para desenvolver um equipamento capaz de tornar mais fácil o sonho alimentado por Valquíria de, daqui para a frente, tornar-se escritora de livros infantis. Na manhã desta quinta-feira (3), o diretor-presidente da faculdade, Sandro Albino Albano, esteve com uma equipe do Rio na casa de Valquíria para entregar o sistema. A partir de agora, a mulher de 42 anos dispõe de um notebook dotado de um software capaz de reconhecer pelo olhar e digitar a letra que ela quer escrever.
— Vai ser ótimo. Agora ela vai se comunicar mais rapidamente — comemora a pedagoga Iraci Fiedler, a amiga que, em longas sessões, empenhou-se a transcrever o livro a partir das piscadas de Valquíria.
Val, como é chamada pelos familiares, era uma ativa professora da rede estadual, ensinando crianças e adultos. Não escondia o grande sonho de ter um filho. Ele veio na forma de Marcos Henrique, hoje com seis anos, que aprendeu o alfabeto aos três, para poder se comunicar com a mãe.
Depois do AVE, a tia, Marília, 40 anos, e a avó, Lia Mara, 71, é que puderam dar ao menino o colo e os abraços que a mãe estava impossibilitada de oferecer.
Lia conta que nos primeiros tempos a família convivia com Val sem desconfiar que ela ouvisse e entendesse o que acontecia a sua volta. A descoberta ocorreu quando a irmã, num rompante, disse:
— Se está me entendendo, pisca o olho.
Valquíria piscou.
"Escrever serviu de conforto e de alento para ela", diz a amiga Iraci
Começou assim uma forma rudimentar de comunicação, aprimorada quando uma tia teve a ideia de recitar o alfabeto e pedir que Val abrisse o olho na letra que quisesse usar, para formar palavras e frases.
Durante esse processo, Iraci Fiedler visitava e se comunicava com a velha amiga. Em 2016, começou a fazer uma pós-graduação em neuropsicopedagogia na unidade local do Censupeg. Teve a ideia de trabalhar com o caso de Valquíria e fazer o livro.
— Falei sobre a ideia no Natal de 2016. O rosto dela se iluminou — evoca.
As duas começaram a trabalhar em janeiro, duas tardes por semana. Iraci posicionava-se junto à cama, desfiava o alfabeto e anotava num caderno os relatos da amiga, letra a letra. Na capa, colou uma foto de Val durante a gravidez e pôs o título Best-Seller de Valquíria Sohne. Foi um trabalho, vagaroso, que só agora chegou ao fim.
— Às vezes, só chorávamos. Em outras, ela pedia para escrever coisas que não eram para o livro. Escrever serviu de conforto e de alento para ela. Além disso, me mudou, me ensinou muito. Comecei a ver o mundo de outra forma — conta Iraci.
Em uma das páginas, por exemplo, os olhos de Valquíria escreveram, pelas mãos de Iraci, sob o título Comunicação: "Eu estava totalmente no escuro, e alguém acendeu a luz. Quando eu cheguei em casa, não me comunicava de jeito nenhum. Era um sufoco. Lembro de uma manhã em que eu chorava muito. Meu pai e a cuidadora não adivinhavam o que eu queria. Por sorte, minha mãe entrou no quarto e disse: 'Ela está com calor'. E tirou o cobertor. Eu estava ensopada. Alívio".
Com o livro autobiográfico pronto, Iraci fez contato com a direção do Censupeg, pedindo ajuda para a publicação. A instituição não apenas aprovou a ideia como resolveu investir em uma tecnologia para facilitar a comunicação da moradora de Igrejinha.
A tarefa ficou a cargo do bolsista Caio Cabral, 18 anos, sob supervisão de Fabricio Cardoso, coordenador do laboratório de inovações educacionais e neurociências. O trabalho resultou em um sistema no qual Valquíria olha para um teclado virtual que ocupa quase toda a tela de um notebook, enquanto um sensor infravermelho identifica a letra em que ela está focando. Automaticamente, essa letra é digitada em um editor de texto. Ela pode integrar esse sistema com outros programas – enviando as mensagens por WhatsApp, por exemplo.
— Vai acelerar bastante a comunicação da Val. Agora a faculdade está pensando em usar esse sistema para ajudar em outros casos — disse Cardoso.
A equipe está passando a semana em Igrejinha, ajudando Valquíria no aprendizado do uso do equipamento. Como diria ela, é mais uma luz que alguém acende.
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Leia trechos do caderno ditado por Valquíria:
"Depois minha irmã criou o Sim e o Não.
Se eu abro bem os olhos a resposta é sim.
Se eu fecho os olhos, a resposta é não.
Ufa! Já facilitou um monte.
Mesmo assim, eu sofri muito nesse período.
Também aconteceram algumas coisas engraçadas: depois de estar em casa, fui algumas vezes ao hospital para fazer exames.
Um dia, uma enfermeira entrou no quarto e começou a me beliscar.
A cuidadora levantou ligeiro e disse para ela parar.
A enfermeira respondeu:
— Por quê? Ela nem gritou"
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"Algum tempo depois, minha tia estava aqui em casa, e a mãe perguntou se ela sabia quem me visitou. Era uma amiga que não saía de casa há muito tempo. Minha tia apontou para mim e disse que eu ia contar. Então começou a soletrar, e eu abri os olhos nas letras certas. Aleluia! Alguém descobriu que eu podia falar.
No outro dia, veio uma prima e fez uma porção de testes. Viram que, além de me comunicar, eu enxergava bem. E todos pularam de alegria."
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"16-2-2017
Ainda é difícil falar comigo. Precisa ter muita paciência para ficar soletrando. Graças a Deus, tenho pessoas com essa paciência e hoje estou contando a minha história"
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"O sonho
Eu sempre quis ter um filho. Era meu maior sonho. Mas nunca tive um namorado que pudesse fazer planos.
Em 2007, conheci o pai do meu filho numa festa. Uma das primeiras coisas que me falou: que não queria ter filhos. Pois já era separado. Nunca foi muito santo. E acabei sofrendo muito. Mas fingia estar bem. E continuava saindo com ele. (...) Quando estávamos juntos, eu pedi um filho. E disse que não ia cobrar nada. O filho seria só meu. Ele disse que ia pensar, mas nunca mais falamos sobre o assunto. Em janeiro de 2011, eu estava na minha irmã, e esqueci por vários dias o anticoncepcional."
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"Do sonho ao pesadelo
Ao contrário do que todo mundo pensa, a gravidez foi uma surpresa, mas fiquei radiante com a noticia dada pela doutora. A gravidez foi muito tranquila. No dia 10 de novembro de 2011, fui para o hospital ganhar o bebê.
O hospital logo encheu de familiares e amigos. Até o pai do meu filho foi e assistiu o parto. Depois me colocaram numa maca e me levaram para o quarto. Daí, não me lembro de mais nada.
A partir daí, vou contar o que já ouvi uma porção de vezes: naquela semana, a minha mãe conta que eu cuidei do meu filho, dei de mamar no peito, dei banho, troquei a fralda, agi como mãe. Também tive vários episódios que já eram o início do AVC. Falta de ar, tontura, mas achavam que eu tinha depressão pós-parto.
Fizeram vários exames, e não aparecia nada. Na manhã do dia 16 de novembro, o pai do meu filho veio para registramos o bebê. Como não me sentia bem, minha mãe foi com ele no cartório. Quando terminaram, a minha mãe ligou para saber como eu estava. Minha irmã disse que eu estava dormindo. Mas ela não conseguia me acordar. Então voltaram logo para casa.
Quando chegaram, eu estava tendo uma convulsão."
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O Escafandro e a Borboleta
A história da professora gaúcha Valquíria Sohne faz lembrar a do jornalista francês Jean-Dominic Bauby, que acabou inspirando o premiado filme O Escafandro e a Borboleta (2007). Prestigiado editor da revista francesa Elle, Bauby (interpretado por Mathieu Amalric) levava uma vida de sedutor bon vivant até sofrer, aos 42 anos, um AVC diante de um de seus três filhos pequenos. Reduzido a um corpo inerte e sem fala, com o movimento restrito apenas a seu olho esquerdo, ele preservou a consciência – e é por seu ponto de vista e por seus fluxos de memória que o diretor americano Julain Schnabel constrói uma narrativa de grande apuro visual, traduzindo em imagens os estados físico e emocional do jornalista. O drama conquistou o troféu de melhor direção no Festival de Cannes e os Globos de Ouro de melhor filme estrangeiro e melhor diretor, além de concorrer a quatro Oscar.