Aos prantos, a menina manifestou uma súplica em princípio impensável para uma criança de nove anos:
— Mãe, vamos tirar a minha perna.
Vitória Cristina Fraga Machado só conhecia, até então, uma rotina de dolorosas cirurgias, numerosas limitações e perspectivas desanimadoras. Sofria de pseudoartrose congênita de tíbia na perna direita, doença que fragiliza o osso entre o joelho e o pé — em caso de fratura, ele não se restabelece ou, à custa de intervenções invasivas, consolida-se, mas logo tende a quebrar outra vez. Ao saber que, dali a um tempo, teria de se submeter a mais uma operação — previsão que também abalou muito os pais —, fez o apelo.
— Essa perna não vai me deixar feliz, essa perna não me deixa fazer nada — justificou.
Quem hoje vê Vitória com uma prótese, aos 12 anos, movendo-se graciosa sobre patins no ginásio da Sociedade Amigos Balneário Ipanema (Sabi), na zona sul de Porto Alegre, encanta-se com sua performance. Em pouco mais de um ano de treinamento — ela começou com patins de segunda mão, sovados, comprados a R$ 80 no site OLX, e hoje exibe um par de R$ 3 mil, tinindo de novo, fornecidos por um patrocinador —, já são três participações em competições, todas contempladas com medalhas.
É como se (antes) tivessem cortado as minhas asas e eu não pudesse voar. Aí recuperei elas e comecei a voar de novo. Me sinto livre. É como se eu tivesse uma vida normal. Quando estou patinando, não lembro que não tenho a perna. É como se eu tivesse a perna.
VITÓRIA FRAGA MACHADO
Patinadora, 12 anos
Mas há muito mais a contar sobre a garota de cabelos coloridos, com mechas em verde, rosa, azul e roxo inspiradas nos ídolos da boy band sul-coreana BTS, que sonha se tornar uma atleta de renome mundial.
Filha biológica de uma detenta da penitenciária Madre Pelletier, Vitória passou o primeiro ano de vida na companhia da mãe, encarcerada, recebendo visitas dos futuros adotantes, a cabeleireira Paula Fraga Machado, 45 anos, e o metalúrgico Miguel dos Santos Machado Neto, 49. Aos 11 meses, em um passeio à casa da família que logo a teria em definitivo, o primeiro susto: o bebê começava a caminhar e, num pulinho inofensivo para descer do sofá, auxiliada por Paula, quebrou a perna ao cair de joelhos.
— Não era para tanto — recorda Miguel.
No hospital, o médico tentou tranquilizá-los:
— Às vezes, um tombinho bobo pode ser mais grave. Às vezes, um tombinho maior pode não ser nada.
Com a demora na recuperação, ficou evidente que havia algo mais. Da consulta a um especialista, veio o diagnóstico sombrio da pseudoartrose congênita de tíbia. Até a dramática decisão da amputação, a paciente contabilizou um total de três fraturas de tíbia e uma de fêmur e sete cirurgias para colocação e retirada de fixadores externos na perna, além dos períodos em que teve de utilizar órteses (suportes ortopédicos para imobilizar e proteger o membro) e muletas para poder se locomover. O dano no fêmur (osso da coxa), não comprometido pela enfermidade, resultou de uma peraltice: apesar da tíbia machucada, Vitória caiu ao subir no fogão para mexer na árvore de Natal. A perna, que já tinha fixadores na parte de baixo, ganhou mais alguns em cima.
— Mas sabe por que eu subi ali? — intervém Vitória no depoimento do pai. — Porque ele botou bombom na árvore! Eu queria pegar e ele não deixou.
Sempre muito ativa, a menina nunca foi tolhida pelos pais. Não executava apenas o que realmente não conseguia, como os exercícios das aulas de Educação Física, mas era incentivada a tentar o que tivesse vontade de fazer.
— Se você acha que consegue, vai — orientava a mãe.
Na escola, Vitória recebeu a proteção dos colegas, que temiam que ela se machucasse, mas não escapou da zombaria, sendo alvo de apelidos: Robocop, perneta, sem-perna, curupira (personagem fantástico do folclore brasileiro, o índio tem os pés ao contrário — os calcanhares para a frente e os dedos para trás).
Os ataques desestabilizaram a menina, que ficou queixosa e briguenta. Um dia, ela revidou: bateu com uma das muletas em um garoto que a importunava.
— Isso é engraçado, mas é verdade! — explica a patinadora, acanhada durante boa parte da entrevista ao GaúchaZH, quando os pais e a repórter começam a rir. — Aí ele nunca mais brigou comigo, nunca mais falou coisa para mim.
Com a informação de que seria necessária mais uma cirurgia, veio então o pedido da menina para que aquele tormento fosse encerrado para sempre, recorrendo-se à mais drástica das soluções. Por quase um ano, os pais conversaram com a filha sobre o impacto — irreversível — que a decisão acarretaria.
— No dia em que você tirar a perna, não tem volta, não vai nascer outra perninha — alertava Paula.
Na internet, a cabeleireira buscava vídeos de amputados com próteses praticando esportes, dançando, caminhando.
— Esta aqui é uma pessoa sem perna.
— Olhaí, mãe! É mais feliz do que eu — reagia a criança.
Paula e Miguel reuniram os outros três filhos e mais alguns parentes e pediram apoio para tomar a resolução final. A concordância com o desejo de Vitória foi total, mas o médico que a acompanhava havia anos não quis realizar o procedimento, alegando que se sentiria um "fracassado".
— Doutor, eu quero! Sou eu que quero! — pediu a pequena paciente.
Após pesquisar sobre o assunto, os Machado localizaram um profissional no interior de São Paulo que avaliou o histórico e os exames da garota e concordou em atendê-la. Em março de 2015, pais e filha desembarcaram em Campinas, onde Bruno Livani, mestre e doutor em cirurgia pela Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), com especialidade em ortopedia pediátrica e traumatologia, faria a amputação na altura da canela. Apesar da convicção que transparecia na caçula, Paula estava inquieta.
— Acho que fiquei em dúvida até o último momento. Era uma decisão que estávamos tomando por ela, mesmo ela tendo pedido. Na cabecinha dela, ela queria se livrar da dor. E mais tarde, será que me cobraria? Todas essas perguntas vieram à cabeça da gente. Foi muito difícil, mas senti que eu deveria respeitá-la — lembra a mãe.
O único medo de Vitória era o de ficar longe dos pais no momento da cirurgia. Pediu que a mãe tirasse o esmalte das unhas do pé ruim, já deformado e menor do que o esquerdo, para que a equipe médica não se compadecesse na hora de descartá-lo. A intervenção foi um sucesso, e, ao acordar da sedação, a menina já estava sorrindo.
— Mãe, por que a gente não fez isso antes?
Em entrevista por telefone, Livani opina que a amputação é a técnica que dá o melhor resultado funcional nos casos de pseudoartrose congênita de tíbia:
— Quanto mais precocemente você faz uma amputação, com mais naturalidade ela vai se concretizar. Foi a salvação da vida dessa criança.
A adaptação a próteses se dá mais rapidamente na infância do que em um adulto. Quarenta dias depois, Vitória já usava a primeira delas, adquirida com a renda da rifa de um tablet. Tinha a recomendação de utilizar muletas por uma semana, mas no segundo dia já se experimentava sem apoio. A menina não sentiu vergonha do membro artificial e nunca deixou de vestir saias e shortinhos. Incomoda-se mais com os cabelos crespos, alisados com chapinha, do que com a perna substituta.
A paixão pela patinação foi descoberta no final de 2016, depois de tentativas na natação, no basquete e na ginástica artística e olímpica (Vitória atualmente também pratica atletismo na Sogipa). Ao chegar à escola do professor André Luis Kasper, sua lição inicial foi a de aprender a cair. No primeiro tombo da nova aluna, Kasper se assustou, achando que a prótese poderia se deslocar.
— E aí, Vitória? Tudo bem? — perguntou o instrutor.
— Melhor agora. Vou adiante.
A menina foi ganhando confiança, aprendendo e comprovando sua evolução no embate com as adversárias nos campeonatos — Vitória disputa com concorrentes sem limitações. No 3º Open Internacional de Patinação Artística, em outubro, em Capão da Canoa, que reuniu centenas de praticantes do Brasil e da América do Sul, a organização queria inscrevê-la na categoria especial, destinada a pessoas com deficiência, o que lhe daria direito a uma exibição e a uma medalha de participação. Kasper insistiu: sua aluna disputaria com as demais patinadoras. Sabendo que Vitória costuma levar o público às lágrimas quando entra em quadra — ainda que o uso de meia-calça e a iluminação por vezes disfarcem a perna diferente —, o técnico se reuniu com os juízes para fazer um pedido:
— Julguem com a técnica, com a razão, e não com o coração.
Vitória deixou o Litoral Norte com uma medalha de terceiro lugar. Essa e suas outras duas condecorações — primeira colocada na Copa Wirbel e terceira na Copa André Kasper, ambas na Capital — foram conquistadas com os patins velhos e a prótese antiga. Melhor equipada — uma vaquinha online permitiu a compra da prótese atual, produzida com fibra de carbono, de qualidade muito superior —, ela tende a aprimorar seu desempenho daqui por diante. O professor reconhece na aprendiz as principais características de uma boa patinadora: garra e força de vontade. A garota ainda tem um pouco de dificuldade nos giros, com uma e duas pernas, mas é ótima nos saltos — no começo, Kasper achou que ela jamais seria capaz de saltar. Agora, Vitória está pronta para avançar um nível.
— Ela está se superando sempre, surpreendendo sempre. Não sei dizer aonde ela vai chegar, mas posso dizer que ela vai longe — projeta Kasper.
Apesar da timidez que a refreou durante quase todo o encontro com ZH — "Vai ter pergunta difícil? Porque tem coisa que eu fico no cricricri" —, Vitória afirmou também acreditar que seu futuro na patinação é promissor. Ainda que conte com patrocinadores para calçados de primeira linha e roupas de treino, ela necessita de verba para seguir carreira em um esporte caro. Começam a surgir convites para viagens, mas ela só poderá aproveitar as oportunidades se aparecerem interessados em custear os gastos com inscrições, passagens, acomodação e alimentação.
— Quero ir para campeonatos internacionais, poder conhecer todo tipo de pessoas, aprender línguas novas. Acho isso bem legal. Quero fazer faculdade de Educação Física para ser professora de patinação — planeja. — Falando bem sério, quero aprender a língua coreana — confidencia, recorrendo ao celular para mostrar fotos de seu grupo musical favorito, assunto que atravessou a entrevista mais de uma vez.
Os pais também experimentam uma nova realidade. Vitória já usa prótese há quase três anos, mas ainda tem muitas questões a resolver internamente. Paula crê que a infância da filha, tão inusual, os tornou permissivos demais no papel de pais. Tanta dor provocada pela perna doente dificultou, muitas vezes, a compreensão do que a caçula de fato sentia — ainda ocorrem arroubos de agressividade e desobediência, além de uma sensação intensa de incapacidade e vergonha após um tombo que parece estragar todo o treino.
— Tem muita coisa confusa dentro da cabecinha dela. Ela tem medo de nos perder. Acho que é normal uma criança adotada ter medo de ser abandonada novamente. Procuro não dar ênfase à adoção — diz Paula. — Às vezes, parece que ela criou uma couraça para se defender de tudo isso que aconteceu. Mas, no fundo, no fundo, ela é um doce de criança, um amorzinho — derrete-se.
Na tarde da terça-feira, 23 de janeiro, Vitória demonstra suas habilidades na quadra da Sabi para a sessão de fotos com o jornal. O barulho do contato das rodinhas dos patins com o piso de madeira corrida, ecoando no ginásio vazio, assemelha-se ao do motor de um avião que ronca prestes a decolar. A esportista reclama das dificuldades para executar o chamado arco, em que a mão direita, levada para trás, segura o pé da prótese lá no alto, mas o movimento é desafiador para grande parte das praticantes. Ela se esforça para definir o que sente ao ganhar velocidade e deslizar de um lado para o outro.
— É muito diferente, é muito bom. É uma coisa que eu não sei explicar...
A repórter insiste. Vitória, então, se solta:
— É como se (antes) tivessem cortado as minhas asas e eu não pudesse voar. Aí recuperei elas e comecei a voar de novo. Me sinto livre, bem livre. É como se eu tivesse uma vida normal. Quando estou patinando, não lembro que não tenho a perna. É como se eu tivesse a perna. Me sinto feliz, muito, demais. Grata, muito grata às pessoas que me ajudaram e continuam me ajudando, aos meus pais, que estão sempre batalhando.
O ginásio precisa ser fechado, e encerramos o bate-papo.
— Foi fácil ou difícil dar entrevista?
— Mais ou menos. Eu tô com o olho cheio d'água, mas não sei por quê — responde Vitória, avisando que vai dar um pulinho no banheiro.