Em todo o Brasil, há menos de 5 mil crianças e adolescentes disponíveis para adoção. Na outra ponta da fila, quase 40 mil solteiros e casais estão cadastrados para adotar um filho. Apesar de o número de adultos dispostos a ter filhos não biológicos ser oito vezes maior do que o de jovens à espera de uma família, meninos e meninas podem aguardar anos em instituições de acolhimento sem uma chance de recomeçar a vida com novos laços afetivos.
Uma variável do Cadastro Nacional de Adoção (CNA) explica boa parte desse descompasso: a idade. Mais de 90% dos jovens disponíveis para adoção têm mais de seis anos, e só 10% dos pretendentes cadastrados no CNA aceitam adotar alguém com esse perfil. Quando o assunto é adotar adolescentes, o número é ainda mais restrito: apenas 0,4% dos pretendentes estão abertos a receber um filho com mais de 12 anos, embora 61% dos jovens no CNA tenham esse perfil, somando mais de 3 mil adolescentes disponíveis para adoção.
Algumas iniciativas estão fazendo essa realidade mudar. A principal delas é o apadrinhamento afetivo, prática reconhecida por lei desde 22 de novembro de 2017 – a atividade era regulamentada pelo governo federal desde 1999, mas não constava no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Instituições abrem suas portas para que pessoas da comunidade conheçam crianças que estão fora do perfil mais procurado pelos pretendentes. Os padrinhos passam por cursos de formação e, com o estreitamento da ligação com os afilhados, podem realizar passeios fora das instituições de acolhimento e até curtir finais de semana juntos.
– A ideia do apadrinhamento não é conseguir um pai ou uma mãe para o jovem acolhido. O que procuramos é oferecer um laço de afeto dos jovens com alguém da comunidade, para que eles não tenham a vida social restrita à instituição – explica Camila Monteiro, do Abrigo João Paulo II. – O comportamento e o desempenho escolar melhoram muito quando a criança tem uma boa relação com o padrinho. É alguém de fora dando atenção para ela. Isso muda tudo.
Embora o objetivo do apadrinhamento não seja a adoção, muitos padrinhos se tornam também pais. O psicoterapeuta Domício Brasiliense passou por esse processo. Com um filho consanguíneo já adulto, ele tinha há muito tempo o desejo de ser pai adotivo. Quando soube que um amigo havia optado pelo apadrinhamento afetivo, a vontade se acendeu novamente. Depois de fazer as oficinas de apadrinhamento do João Paulo II, obrigatórias para a instituição, definiu o perfil de afilhado que desejava:
– Nunca imaginei adotar um bebê. Já tive essa experiência de ser pai de uma criança com o Tiago, hoje com 37 anos. Queria um menino mais velho, pois não tinha espaço na rotina para cuidar de um pequeno, e também por acreditar que poderia ser um bom orientador, no sentido de bater papo e viver junto.
O psicoterapeuta apadrinhou Anderson em setembro de 2016, quando o menino tinha 16 anos.
– O pessoal do abrigo me disse que nossos perfis batiam, e só então me mostraram uma foto dele. Quando vi a imagem foi algo muito forte. Nos primeiros encontros, acompanhados de psicóloga e assistente social, sentia que o Anderson tinha uma ansiedade positiva, mas também certo receio de ser rejeitado. Já eu tinha uma expectativa de querer ser aceito, aprovado – lembra Domício.
A convivência se estreitou e, em fevereiro de 2017, ele ganhou na Justiça a guarda de Anderson. A partir da assinatura de um juiz, tornou-se pai de um menino que já contava 17 anos de idade.
– Não esperava que alguém ainda quisesse me adotar. Estava na minha cabeça que eu teria que me cuidar. Tinha que focar, estudar, encontrar um trabalho e seguir a minha vida – diz Anderson.
Estudar e encontrar um trabalho seguem sendo prioridades do jovem, que fez curso de barbeiro, trabalha em uma empresa de comunicação social e, para o futuro, sonha com a carreira de cineasta.
– Meu pai são meus olhos. Antes, não tinha visão ampla de nada. Hoje, graças a ele, tenho. Com o apoio do meu pai, consigo sonhar e realizar meus objetivos – afirma o jovem.
O dia em que Domício ganhou a guarda de Anderson foi de comemoração, mas também teve uma ponta de tristeza. O menino foi recolher seus pertences no quarto da casa-lar em que morava. E o tempo de reunir tudo em uma mochila se estendeu por longos minutos. Ansioso com a partida, o novo pai foi ver se o filho precisava de ajuda. Encontrou o jovem na garagem, abraçado aos aos seus dois irmãos biológicos, de 16 e 17 anos, também moradores do local.
– Eles se abraçavam e choravam, pois estavam perdendo um irmão – emociona-se Domício. – Nós nos abraçamos, e eu disse que não perderíamos o convívio, que batalharíamos para seguirmos próximos. Naquele momento, decidi inconscientemente que daria um jeito de deixar todos juntos mais uma vez.
Atualmente Domício é padrinho dos dois. E logo deve se tornar também pai deles. O psicoterapeuta acredita que, nos próximos dias, deve ganhar a guarda dos irmãos. Para acomodar todos, construirá uma casa no bairro Agronomia, que também servirá para recepcionar jovens acolhidos e em processo de transição para adoção.
– Eu e Anderson somos voluntários no abrigo. Ele corta o cabelo dos meninos e já fala sobre a sua experiência de vida, que serve de exemplo. Muitos completam 18 anos e precisam sair da casa-lar, mas não estão preparados para isso. Nosso espaço poderá ajudá-los no futuro – explica Domício.
Desde os seis anos em situação de acolhimento, Anderson preserva não apenas a relação com os irmãos, mas também com funcionários do João Paulo II. Com frequência, Domício realiza churrascos com os "pais sociais" de Anderson – trabalhadores da casa-lar que são contratados para cuidar de grupos de 10 crianças. Para a psicóloga Bianca Sanchotene, do Grupo de Apoio a Pais Travessia do Instituto de Ensino e Pesquisa em Psicoterapia (Iepp), a criança que tem acesso ao seu passado, por mais difícil que tenha sido, torna-se mais livre para construir seu futuro:
– A história da criança antes da adoção muitas vezes é ligada a traumas, porém, é preciso oferecer escuta para que ela possa elaborar e acomodar dentro de si o que diz respeito ao seu passado.
Além de não fecharem a conexão da criança ou do adolescente com sua história, é importante que os pais não idealizem o filho que está para chegar. Algumas vezes, pretendentes esperam uma gratidão que muitos filhos ainda não são capazes de oferecer, já que estão se adaptando a uma nova vida, distanciando-se de vínculos cultivados no abrigo, o que pode reavivar o sentimento de abandono em relação à família consanguínea.
– Quando pensamos em adoção, temos de entender que nossos filhos têm o direito de ser eles mesmos, não o que nós esperamos deles. Não podemos dizer que não temos expectativas, pois seria mentira. Criamos expectativas para tudo. Mas temos que aprender a nos frustrar com isso. Um filho não pode ser a idealização de um pai – diz Domício.
Para a psicóloga Bianca, a idealização é comum tanto para os filhos biológicos quanto para os adotivos:
– Os pais geralmente idealizam e esperam que seus filhos os superem, tenham sucesso e possam muitas vezes realizar aquilo que não conseguiram, pelas mais diversas razões. A criança confronta essas expectativas e mostra que, realizando algo diferente daquilo que foi imaginado (pelos pais), pode surpreender e encantar. Suas características próprias exigem empatia e tolerância.
As razões da morosidade
Depois que uma criança ingressa em uma casa de acolhimento, o poder público tenta reintegrá-la ao núcleo familiar ou a algum parente. Na ausência dessa possibilidade, é iniciado um processo de destituição de poder familiar, que pode ser seguido de uma habilitação para a adoção. Das 4.864 crianças em situação de acolhimento no Rio Grande do Sul, 1.322 têm a habilitação. A morosidade nesse processo faz com que muitas delas passem anos em instituições, apesar de a lei afirmar que esse prazo não poderia superar 120 dias. Quando finalmente ficam aptas para entrar em uma nova família, já saíram da idade ideal buscada pela maioria dos pretendentes.
O projeto de lei que reconheceu o apadrinhamento afetivo, aprovado em novembro, também estabeleceu prazo de até 120 dias para a tramitação dos processos de habilitação para adoção. A modificação deveria fazer a fila de adoções andar mais rápido.
– A lei avançou, mas a crítica que se faz é que, desde 2009, já estava no ECA que a destituição tem de tramitar em 120 dias, o que não é cumprido. Então, não adianta o Estatuto agora dizer que a habilitação também tem de rodar nesse prazo se a habilitação continuar demorando mais de um ano e a destituição se estender por três ou quatro anos. Precisamos fazer a lei funcionar – afirma a promotora de Justiça Cinara Vianna Dutra Braga.
Para ela, é a falta de aparelhamento que não deixa a lei ser observada:
– Cartório e equipe técnica não dão conta do trabalho por falta de funcionários. O Poder Judiciário tem a obrigação de aparelhar melhor esse sistema, pois essas crianças dependem de nós. Temos um único juizado tratando da matéria, com apenas um cartório.
Cinara também observa que a fila de adoções anda devagar por conta das restrições dos pretendentes:
– Temos uma cultura de adoção de crianças pequenas.
Como Domício, o casal Anderson Luis e Joel Sidnei da Silva é uma exceção nessa cultura. Quando tomaram a decisão de adotar, eles evitaram idealizações e preconceitos.
– Somos negros e homossexuais. Sabemos o que é sofrer discriminação. Não queremos agir como os outros agem com a gente. Um menino que está em um abrigo também não merece sofrer preconceito. Por isso, entramos no processo de apadrinhamento de coração aberto. Não é possível programar como será um filho biológico. Com o adotivo, é a mesma coisa. Se você está disposto a amar a pessoa que virá, vai aceitá-la e amá-la de qualquer modo – defende Anderson.
Atualmente com 10 anos de relacionamento, o casal começou um processo de apadrinhamento afetivo em 2015, por meio do grupo de apoio Amigos de Lucas (que tem este nome em referência à luta dos jornalistas Alexandre Kieling e Helena Martinho contra a burocracia e preconceito para a adoção do menino Lucas, nos anos 1990). Depois de um ano de cursos sobre o tema, Anderson e Joel participaram de uma festa em que jovens considerados inadotáveis – que passaram pelo CNA, mas não foram adotados – encontravam padrinhos. A iniciativa das conversas deveria partir das crianças e dos adolescentes. Anderson e Joel circularam nervosos como uma gestante em dia de parto.
A tensão aumentava na medida em que outros adultos eram escolhidos pelos jovens – quando um encontro ocorria, o grupo batia palmas. Anderson foi tomar ar do lado de fora, enquanto Joel foi buscar um refrigerante. Junto com a bebida, trouxe Alison, então com 13 anos que se tornaria seu filho.
– Simpatizei com eles desde o início, mas não fui conversar porque achei que eram os fotógrafos do evento – conta Alison, lembrando que os pais carregavam uma câmera com a qual fotografavam a festa.
A ligação criada foi intensa. O trio passou a conversar diariamente por telefone ou mensagens de WhatsApp. Pouco antes da adoção de Alison, em 2016, a família sofreu um revés: Joel foi diagnosticado com câncer. Nos finais de semana, quando passava noites internado no hospital, recebia uma visita infalível.
– Foi um período tumultuado, pesado, mas o Alison fazia questão de ficar comigo no hospital.
Um adolescente geralmente quer estar na rua, em um shopping, com os amigos. Mas ele ia lá e passava as noites do meu lado. Isso com certeza ajudou muito na minha recuperação – recorda Joel.
Hoje com 15 anos, Alison fica em dúvida sobre seu futuro. Já sonhou ser jogador de futebol e servir o Exército.
Os questionamentos normais da adolescência encontram pais preparados.
– Todo adolescente já passou por rebeldia, por períodos de afrontar os pais. Isso é normal, seja para um filho biológico ou adotivo. Se você está disposto a amar seu filho, vai aprender muito com tudo isso – afirma Anderson.
Mais uma fonte de aprendizado são as reuniões mensais do grupo Amigos de Lucas. A organização atua hoje buscando famílias habilitadas para adotar crianças mais velhas ou com numerosos irmãos – apesar de o poder público ter responsabilidade de realizar esse trabalho, muitas vezes a tarefa emperra na falta de pessoal. Nas reuniões, pais experientes respondem dúvidas de quem aguarda por um filho ou adotou há pouco. O Grupo de Apoio a Pais Travessia, do Iepp, também promove esse tipo de auxílio.
– É um momento de trocas, de conhecer pessoas que se identificam com nossos problemas, e também de fazer amizades – explica Anderson.
Rosi Prigol, presidente do Amigos de Lucas, recomenda que os pais participem das reuniões até findar o processo de adoção, mas muitos continuam frequentando os encontros por vários anos.
– Vários pretendentes começam a ir às reuniões com a ideia de adotar crianças com até três anos. Ao ouvir relatos positivos dos participantes, repensam isso – conta Rosi.
Diagnóstico revertido
Outros grupos de apoio promovem a aproximação de pretendentes com crianças mais velhas e adolescentes no Rio Grande do Sul, como o Elo e o DNA da Alma. Além disso, por meio de vídeos na internet, o canal Adoção Tardia tem ajudado jovens a encontrar novas famílias. Mas os advogados Graziella Da Fré e Dani Rossoni foram sensibilizados por um projeto recém-criado por uma estudante de Ensino Médio.
O Missão Diversão foi capitaneado por Marcella Bertoluci, do Colégio Farroupilha.
– A ideia era fazer com que crianças disponíveis para adoção e pretendentes passassem um dia juntos – explica Marcella. – Era apenas um modo de oferecer a todos um dia diferente. Não imaginava que isso daria em adoção.
Marcella foi surpreendida com cinco adoções a partir de dois encontros promovidos. O primeiro, em junho, possibilitou que Graziella e Dani conhecessem dois irmãos com perfis difíceis de adoção: um menino com 12 anos, diagnosticado com “retardo mental moderado”, e sua irmã de oito.
– O encontro promoveu uma gincana com várias brincadeiras. No meu grupo, estavam esses dois. Fiquei encantada com o modo como o menino era carinhoso e protetor com a irmã. Ali nasceu um sentimento muito forte – lembra Graziella, que, por precaução com relação à segurança dos filhos, prefere não divulgar seus nomes.
O casal de advogados estava na fila de adoção desde 2011, esperando uma criança com até três anos, mas não conseguiu ficar longe da dupla que conheceu naquela tarde. Poucos meses depois, estavam morando juntos.
Como muitas crianças que passaram por instituições de acolhimento, a dupla adotada por Graziella e Dani tem dificuldades no estudo e na leitura – dificilmente há monitores ou pais sociais disponíveis para reforçar o aprendizado de todos em um abrigo. Os novos pais então desenvolveram regras para estimular os filhos.
– Se quiser jogar videogame por uma hora, vai ter que ler por uma hora, por exemplo. São acordos simples, mas que funcionam – observa Dani.
O carinho dos pais também tem gerado mudanças no comportamento do menino.
Antes retraído, ele agora conversa e faz piadas com os colegas de aula. E até o diagnóstico inicial começou a ser questionado pelos médicos.
– Ainda não há uma qualificação precisa para o problema, mas provavelmente ele tinha algum traço de depressão, que fez com que se retraísse a partir da infância difícil que levou. Com isso, não desenvolveu muitas de suas potencialidades, que agora estão aflorando – afirma Dani.
Ao falar sobre as vantagens de se adotar um adolescente, o advogado brinca:
– É preciso escrever nessa reportagem que só passa trabalho quem quer. Fralda, choro de bebê... Não passamos por nada disso. É muito bom ter um filho que sabe se comunicar. Se o corpo dói, a criança sabe dizer onde dói. Não é como um recém-nascido, em que é preciso adivinhar pelos sinais.
Graziella pondera:
– É claro que diferentes idades dos filhos trazem diferentes tipos de satisfação para os pais. Estamos muito satisfeitos em adotar dois mais crescidos. As pessoas acham que podem moldar o caráter das crianças menores, o que é uma ilusão. Temos dois filhos doces e carinhosos, que nos ensinam todos os dias o que é o amor e uma família.