— Mãe, não chora — pediu Erick Santos da Silva, 15 anos, momentos antes de ser sedado e ingressar no bloco cirúrgico do Hospital Santo Antônio, da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre.
Com previsão para durar cerca de seis horas, a cirurgia era a última esperança do adolescente, vítima de uma distrofia muscular do coração ainda sem diagnóstico. De origem genética, o problema, chamado de miocardiopatia dilatada, fazia com o que o órgão se dilatasse tanto a ponto de perder as funções. Erick deu entrada na sala de cirurgia às 10h15min do dia 8 de dezembro do ano passado para receber um novo coração e, assim, continuar acalentando um sonho confessado à mãe em um momento de medo: o de ter muitos filhos.
Conforme o dado mais recente da Secretaria Estadual da Saúde, referente a 11 de janeiro, 18 gaúchos ou gaúchas aguardam um transplante do órgão: desses, dois têm quatro anos, um tem 12 e um tem 13. Já o drama de Erick começou há mais de 10 anos.
Em 2007, exames de sangue apontaram pequenas alterações. Sem muitas respostas à época, o menino seguiu com acompanhamento especializado até que, três anos depois, médicos do Hospital de Clínicas de Porto Alegre começaram a suspeitar de Complexo de Duchenne ou de Becker (distrofia da musculatura, que pode ser esquelética ou cardíaca), o que não se confirmou. A mãe de Erick, Michele Vidal, hoje com 40 anos, se dedicou a pesquisar o assunto. No meio da imersão, não conseguiu deixar de lembrar da morte do irmão dela, aos 22 anos — o tio de Erick também tinha miocardiopatia dilatada.
Em dezembro de 2011, um novo baque. Seu filho mais velho, Wendel, então com 16 anos, adoeceu. "Do nada", como Michele diz, o adolescente foi acometido por uma insuficiência cardíaca gravíssima. Mais uma vez atrás de respostas, a família foi parar no Hospital da Criança Santo Antônio.
— Até então, o Erick não tinha nada. Os médicos tinham suspeitas e investigações. Foram quatro anos lutando com o Wendel. Ele foi para a fila de transplante e eu sempre buscando uma resposta, pois os diagnósticos deles eram muito semelhantes — recorda a mãe.
Enquanto se dividia entre a doença de Wendel e as incertezas de Erick, Michele conseguiu, em agosto de 2012, acesso a um exame importante para o caçula. Foi constatado um problema cardíaco de grau leve. Embora confirmada, a doença, naquele momento, poderia ser levada tranquilamente por toda vida.
Wendel, por sua vez, foi chamado quatro vezes para fazer o transplante, mas em nenhuma delas ele conseguiu passar pela cirurgia.
— Na primeira vez, quando chegamos na metade do caminho, soubemos que o órgão não tinha resistido. E nas outras três que fomos chamados nem nos deslocamos, pois como ele estava bem, descartamos — relembra a mãe.
Em 2015, quando Wendel tinha 20 anos, seu coração não aguentou mais.
— Não é fácil lidar com o luto por um filho sabendo que o outro filho tem o mesmo problema — reflete Michele.
Dois anos se passaram entre a morte do mais velho e uma nova reviravolta na vida da família de Esteio. Era agosto de 2017 quando a doença de Erick voltou com força total, "atropelando todos", como define Michele. A partir daí, as visitas ao hospital aumentaram de frequência. O adolescente não reagia. Estava muito debilitado e no limite das medicações.
— De caminhar da entrada até o consultório ele cansava. Em casa, ficava deitado encontrando uma posição para dormir — conta Aline Botta, responsável clínica pelo programa de transplante cardíaco pediátrico do Hospital da Criança Santo Antônio.
Com a situação gravíssima, Erick entrou para fila de transplante em setembro do último ano. Precisou ser internado em duas oportunidades, uma em novembro e a última em dezembro.
— No dia 7, veio a notícia de que ele precisaria ir para a UTI tomar medicamentos. Sempre achei que não teria estrutura para passar por tudo isso de novo, mas Deus dá força para a gente. Fiquei das 23h50min até a 1h chorando e falando com Deus, pedindo que ele não permitisse que fosse tirado mais um pedaço de mim — recorda Michele.
A caminho do hospital, no dia 8 de dezembro, atendeu a ligação que tanto esperava — e que mais temia.
Depois que tu passa por uma perda, é um filme que tu sabe como vai acabar. Tive medo, sim, mas estava confiante. Durante todo o tempo eu pedia à Deus "se o Senhor me deixou chegar até aqui, é porque a história vai ser diferente".
MICHELE VIDAL
Mãe de Erick
— Peguei o trem e, pelas 8h20min, a doutora Aline ligou. Ela perguntou se eu estava no hospital e respondi que estava a caminho. Foi então que ela disse "Tenho uma boa notícia". Achei que ele sairia da UTI, mas ela completou: "Nós temos um coração para o Erick e ele está aqui do nosso lado". Travei. Estava na estação Mathias Velho (em Canoas) e vim chorando até aqui. Não lembro como peguei o táxi, como cheguei. Liguei para o meu marido e para minha mãe e disse a ela que estava com muito medo. É uma mistura de emoções. Vivi isso quatro vezes com o Wendel. Tu pensas "estou dando a oportunidade do meu filho viver e ao mesmo tempo tenho medo de estar tirando a vida dele".
Os minutos seguintes foram escassos. Da notícia da compatibilidade do órgão — é necessário que o doador tenha peso semelhante e o mesmo tipo sanguíneo do receptor — até o ingresso no bloco cirúrgico, transcorreram pouco menos de duas horas. O difícil foi esperar o resultado do transplante. Foram seis horas de diversos "filmes" passando na cabeça de Michele.
— Depois que tu passa por uma perda, é um filme que tu sabe como vai acabar. Tive medo, sim, mas estava confiante. Durante todo o tempo eu pedia à Deus "se o Senhor me deixou chegar até aqui, é porque a história vai ser diferente".
Atendendo ao pedido de Erick, a mãe se manteve firme:
— Já chorei muito, e toda essa experiência me amadureceu. Tu tens que tirar uma força de onde tu não tens.
De lá para cá, Erick evolui bem. Seu quadro clínico é estável e o garoto passa apenas por ajustes na medicação.
— Ele teve complicações não relacionadas ao coração, mas às medicações, que podem ter efeitos colaterais. Mas são coisas que estão no pacote. Clinicamente, ele se sente muito bem — avalia a médica.
No dia 30 de dezembro, Erick foi levado para um quarto do sexto andar do Santo Antônio. Foi lá que ele, sentado com as pernas cruzadas nos pés da cama, e Michele receberam a reportagem, no dia seguinte ao aniversário de um mês de seu novo coração. Quieto, com lágrimas no rosto, o filho apenas ouvia o relato da mãe.
— Ontem, tirei um pouquinho dele, consegui fazer ele falar. Eu disse que fazia um mês da vida nova e ele soltou: "Estou bem melhor do que antes. Sou uma nova pessoa".