Quando ainda assinava uma coluna diária em Zero Hora, fiz uma previsão que não se confirmou: a de que um eventual leilão da Carris não teria interessados. A Carris faz parte da memória afetiva de Porto Alegre. Dos bondes que circulavam pelos trilhos arrancados nos anos 1970 aos ônibus adesivados que ainda atravessam os bairros da Capital, a empresa se confunde com a evolução da cidade. Mesmo assim, minha sensação, alguns anos atrás, era sombria.
Alguns fatores objetivos alicerçaram a minha análise. O primeiro é a mudança da matriz de transporte nos grandes centros urbanos, com a proliferação de aplicativos carregados de vantagens, como conforto e preço competitivo, especialmente nas viagens mais curtas, que, no caso dos ônibus, são também as mais lucrativas em um ambiente com tarifas uniformizadas. Em segundo lugar, minha projeção pessimista se baseava nas dificuldades da própria companhia, vítima de gestões muito influenciadas pela má política e pouco pelo imperativo da eficiência operacional.
Fiquei feliz com o meu erro. A Carris foi vendida. Minha alegria, porém, ainda é condicional, pelo tamanho do desafio dos novos controladores. Reestruturar uma empresa não envolve apenas a implementação de decisões racionais e a busca de resultados concretos. Há saltos tecnológicos no horizonte, como a adoção de combustíveis limpos. Há resistências internas e consumidores desconfiados.
É preciso mexer com pessoas e com a cultura empresarial, traduzida como “o jeito que as coisas são feitas”. Isso exige tempo, investimentos pesados e uma visão mais ampla do que uma empresa de ônibus realmente significa e para que ela existe.
Em muitas das grandes cidades do mundo, o transporte urbano é subsidiado, porque dele depende a saúde de todo o ecossistema econômico de uma região. Passagem barata significa mais circulação, e mais circulação significa mais vida, mais vendas, mais impostos, mais empregos. No caso da Carris, não bastam gestores competentes e cálculos precisos.
Os caminhos são bem mais sinuosos e os atalhos, sutis. Desejo sorte à nova Carris, aos seus novos donos e a todos aqueles que construíram a ainda constroem a história de uma empresa querida, mas que precisa mudar para continuar sendo o que sempre foi.