Na semana seguinte ao lançamento nos cinemas de Ainda Estou Aqui (2024), que reconstitui um dos mais emblemáticos casos de desaparecimento durante a ditadura militar no Brasil (1964-1985), o de Rubens Paiva, haverá pré-estreia de outro filme sobre uma célebre vítima do regime. O documentário Doutor Araguaia: A História de João Carlos Haas Sobrinho terá sessões nesta quarta-feira (13), às 19h30min, no Cinesystem de São Leopoldo, e no sábado (16), às 18h30min, na Casa Diógenes de Oliveira, em Porto Alegre (Rua Lopo Gonçalves, 495). Em ambas as ocasiões, a entrada é franca e com debate após a exibição.
Também conhecido como Dr. Juca, o gaúcho João Carlos nasceu no dia 24 de junho de 1941 em São Leopoldo, no Vale do Sinos, em uma família de classe média e ascendência alemã. Estudante de Medicina da UFRGS, em 1963 elegeu-se presidente do Centro Acadêmico Sarmento Leite. Devido a sua militância, foi afastado do cargo logo após o golpe que derrubou João Goulart da Presidência do Brasil, em abril de 1964. Foi detido pelo Departamento de Ordem Polícia e Social (Dops) e teve sua matrícula na faculdade suspensa, mas acabou reintegrado por uma mobilização de colegas e por ser considerado bom aluno.
Tachado de "subversivo" e perseguido pelos órgãos de repressão, João Carlos saiu de casa em janeiro de 1966, dizendo que ia fazer um curso em São Paulo — realmente esteve no Hospital das Clínicas, mas, conforme entendem seus familiares, já estava envolvido com o Partido Comunista do Brasil (PCdoB). O gaúcho viajou para a China, onde aprendeu sobre resistência, concentração popular e trabalho com camponeses, e, ao voltar, foi direto para a região do Rio Araguaia, na Amazônia. Passou a atuar como médico comunitário no movimento guerrilheiro criado pelo PCdoB em 1967. Com a ajuda de autoridades locais e da população, montou em Porto Franco, no Maranhão, um pequeno hospital para atender a pacientes historicamente desassistidos.
João Carlos Haas Sobrinho foi morto por tropas militares em setembro de 1972, aos 31 anos. Há relatos de que seu corpo foi exposto em frente à delegacia de Xambioá, hoje município de Tocantins. A família só soube da morte em 1979. Seus restos mortais nunca foram encontrados.
O título do documentário veio de uma história em quadrinhos homônima assinada pelo leopoldense Diego Moreira. O filme é uma produção independente da TG Economia Criativa, com direção de Edson Cabral, que fez a pesquisa e o roteiro em parceria com Sônia Haas, irmã de João Carlos, e Odilon Camargo, marido dela. O projeto foi viabilizado pelo primeiro edital da Lei Paulo Gustavo, com recursos do Estado do Tocantins e das prefeituras de São Leopoldo e Porto Franco, com apoio da Fundação Mauricio Grabois (FMG).
— Após meses de leituras de livros, relatórios e documentos e depois de dezenas de entrevistas realizadas nas cidades de Brasília, São Paulo, Porto Franco, Xambioá, São Geraldo do Araguaia (PA), Goiânia, São Leopoldo e Porto Alegre, emocionado pelos depoimentos de familiares, amigos, pacientes, ex-guerrilheiros, camponeses, estudiosos e lideranças do PCdB, afirmo, com convicção: os vencidos foram os vencedores — disse Edson Cabral. — Que nosso documentário faça justiça a todos aqueles que ousaram enfrentar, com armas simples, amor ao próximo e a convicção dos seus ideais, os canhões e a arrogância dos torturadores. Doutor Araguaia será um instrumento de reflexão, voz ativa na defesa dos direitos humanos, tornando-se um guardião para que essa história não se repita.
"João Carlos plantou sementes de amor ao próximo"
A seguir, confira a entrevista sobre o documentário Doutor Araguaia concedida à coluna por Sônia Haas, que tinha sete anos quando o irmão saiu de casa para nunca mais voltar.
Por que você e o diretor Edson Cabral decidiram contar a história do João Carlos em um filme?
Sônia Haas: Eu sempre quis contar a história do João Carlos. E sempre fui procurada por pessoas do cinema, mas que nunca tinham a iniciativa concreta. Tinha uma ideia e queriam que eu captasse financiamento. Nunca tive tempo para isso, sempre trabalhando. Mas aí quando o Edson veio, ele já veio com tudo pronto na cabeça dele, o que vamos fazer, vamos dar esse jeito aqui, vamos fazer uma parte assim. Confiei nele, e então a gente começou a fazer o documentário a partir do material que tenho. É toda uma vida de busca pelo João Carlos. Eu estou com 66 anos e me preocupo com esse acervo. Agora tudo está, de alguma forma, perenizado.
Como o João Carlos, que era um jovem de classe média e estudante de Medicina, acabou sendo perseguido pelos órgãos de repressão e se tornando um dos líderes no Araguaia?
Independentemente de classe, de qualquer coisa, ele foi uma criança que sempre teve liderança. Onde ele estudou, em volta da nossa casa, pelo que meus pais contavam. Ele sempre tirou o primeiro lugar na escola, escrevia muito bem já desde pequeno. O fato de ele ter saído de São Leopoldo para estudar Medicina em Porto Alegre já ilustra uma vocação dele, de cuidar do próximo, cuidar do outro. E essa vocação se amplia quando ele tem contato com outras pessoas estudiosas e intelectuais. Então, ele se torna essa liderança estudantil que acaba provocando a perseguição pela ditadura militar. Ele era presidente do Centro Acadêmico e foi preso por pensar e por ter ideais diferentes do que o Exército pretendia para o povo brasileiro.
Esse é o grande legado que a gente pode deixar na vida. Escrever uma história que não seja só sua, que seja do povo. Isso é o mais bonito que eu aprendi com o João Carlos. É escolher lutar por uma causa.
SÔNIA HAAS
Irmã de João Carlos Haas Sobrinho
Por coincidência, o documentário está sendo pré-lançado dias depois da estreia de Ainda Estou Aqui, filme de Walter Salles sobre o desaparecimento de Rubens Paiva. Você já viu o filme? O que achou?
Assisti ao filme em Salvador, onde eu moro há 22 anos. Achei muito bom, muito bem contextualizado, mostrou bem o Brasil da época e traz uma voz que pouco é escutada no Brasil, que é a voz dos familiares de desaparecidos políticos, o sofrimento das famílias, a angústia pela ausência de respostas. Se nós olharmos a Argentina, a nossa vizinha, as mães da Praça de Maio, que hoje são avós, elas têm uma luta mais marcante, mais uníssona. O Brasil é um país muito grande, tivemos pessoas de todos os Estados que foram presas e mortas pela ditadura, e não conseguimos essa coesão tão forte como as argentinas conseguiram. Mas estamos em um caminho de evoluir a luta com as novas gerações participando. E acho que o filme do Walter Salles vai colaborar muito para que nossa luta seja mais disseminada, mais conhecida e que a gente possa receber mais apoios de movimentos sociais e da área de educação.
Uma das lutas de Eunice Paiva foi por conseguir que o Estado reconhecesse a morte de Rubens. No caso do João Carlos, sei que essa luta também foi árdua e demorada. Poderia resumir? Seus restos mortais nunca foram entregues, correto?
A Eunice Paiva nos ajudou muito por ser amiga de Fernando Henrique Cardoso (presidente do Brasil de 1995 a 2003). Ela foi fundamental para a Lei 9.140, de 1995, que estabelece que devem receber certidão de óbito as pessoas que estão na lista do livro Brasil Nunca Mais, organizado por Dom Paulo Evaristo Arns. O João Carlos estava nessa lista, então, no início de 1996, eu fui ao cartório de São Leopoldo, na cidade onde meu irmão nasceu, com a minha mãe, e solicitei a certidão. Houve um estranhamento, mas o pessoal pegou o assunto para estudar e uma semana depois me chamaram para entregar a certidão. Mas nessa certidão estava que ele tinha sido morto em condições desconhecidas. Até que, em 2018, a Comissão Especial de Mortes e Desaparecidos Políticos, ligada ao Ministério da Justiça, conseguiu uma retificação nessa certidão. Passou a constar morte não natural, morto por causa de violências por parte do Estado. Isso para nós é um ganho. Não traz o nosso familiar de volta, nada mais nos traz, né? Mas nós lutamos muito pela recuperação da dignidade dessas pessoas, pela reparação e pela memória dessa história no Brasil.
Recentemente, além de Ainda Estou Aqui, foram lançados os filmes O Pastor e o Guerrilheiro, que também revisita o Araguaia, e Marighella, cinebiografia do guerrilheiro baiano. Você acredita que o Brasil está mais disposto a lidar com as feridas e os traumas deixados pela ditadura militar?
Eu acho que o tempo dá uma aliviada nas feridas. E aí, vem uma nova geração que começa a mexer. Mas essa nova geração também tem que ser estimulada e também tem que estar com materiais à mão, livros, publicações, pesquisas, peça de teatro, filmes. Cada vez mais a sociedade civil vem melhorando nesse aspecto. Nós precisamos é que a União tome medidas fortes de oferecer preparo para as instituições de ensino terem material obrigatório sobre este tema. Precisamos de políticas educacionais. Ao mesmo tempo, a gente já está vendo as políticas de reparação que as universidades estão implantando. Só a USP, em 2024, diplomou 15 desaparecidos políticos que haviam sido presos e foram mortos antes de concluir a graduação.
Como foi para você reconstituir a história do seu irmão? Quais as emoções despertadas? Qual é o legado que seu irmão deixou?
Eu tenho a história do João toda na minha mente e no meu coração. Porque desde muito cedo eu lido com ela. E desde os meus 22 anos, quando eu recebi do meu pai a procuração, comecei a buscar o João Carlos oficialmente. Construímos a seis mãos o filme, o Edson Cabral, eu e o meu companheiro, que é mais velho do que eu e viveu jovem esse período da ditadura, teve de sair do Brasil. Juntamos com informações que saíram em publicações do Partido Comunista do Brasil, diários do João Amazonas (1912-2002, líder do PCdoB) e algumas orientações da Fundação Maurício Grabois. O Maurício Grabois foi comandante da Guerrilha do Araguaia, foi um grande cara, um grande político. Eu fiquei 45 dias na região do Araguaia, em Porto Franco, onde o João Carlos viveu. Foi uma experiência maravilhosa, que eu sempre quis fazer. Nunca pude, porque eu sempre estava trabalhando. Meu trabalho não me permitia ficar 30 dias, 45 dias fora. E agora que eu estou aposentada, pude me dedicar somente ao documentário. Larguei todos os meus extras, meus freelancers. Isso me trouxe também, de uma certa forma, uma paz, um conforto de saber que tudo isso não vai se perder. É bom para São Leopoldo, pois João Carlos é um filho de São Leopoldo. É bom para Porto Franco, onde ficaram as pessoas que amavam muito ele. É bom para Xambioá, onde ele foi morto e teve seu corpo exposto. É bom para nossa família, para os meus sobrinhos, que precisam saber a história desse tio. E o João Carlos deixou sementes, plantou sementes de amor ao próximo, cuidando da saúde das pessoas com uma forma carinhosa, brincalhona. Era muito afetivo. Os guerrilheiros viveram, pesquisaram, estudaram, interagiram com os camponeses. Foi uma passagem muito bonita. E a gente vai lá e escuta dessas pessoas que conviveram com ele só lembranças bonitas, emocionadas. Acho que esse é o grande legado que a gente pode deixar na vida. Escrever uma história que não seja só sua, que seja do povo. Isso é o mais bonito que eu aprendi com o João Carlos. É escolher lutar por uma causa.
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