"Os primeiros a parar e os últimos a voltar." O aforismo que definiu a situação do setor cultural na pandemia de covid-19 foi evocado por alguns artistas diante da tragédia climática no Rio Grande do Sul.
Como tantas áreas, a cultura não escapou ilesa das enchentes. No Centro Histórico de Porto Alegre, por exemplo, a Casa de Cultura Mario Quintana (incluindo as três salas da Cinemateca Paulo Amorim), o Margs e o Museu do Trabalho estão alagados. Repercutiu muito na imprensa e nas redes sociais o vídeo que mostra a destruição na Livraria Taverna. Sócio e um dos fundadores da editora L&PM, Ivan Pinheiro Machado tem ido de barco ao depósito no bairro Humaitá, também na Capital, para tentar avaliar a extensão dos danos. Por causa da inundação, o Bar Opinião, o Pepsi On Stage, o Agulha e o Gravador Pub, entre outros lugares, cancelaram shows. Do Circo Bonaldo D'Italia, em Canoas, só se enxerga a ponta da lona azul.
Pessoas também foram diretamente afetadas. O diretor e produtor cinematográfico Alexandre Derlam dos Santos perdeu todos os equipamentos, que estavam em um apartamento da Zona Norte invadido pela água. No Instagram, circula um post pedindo ajuda para os quadrinistas Diego Gerlach, Talita Grass, Marcelo Grisa e Rafa Fritz.
Diante da paralisação da agenda cultural, um grupo de artistas do RS que foram beneficiados pela Lei Paulo Gustavo — criada justamente para minimizar os impactos da pandemia na classe artística — pede que a Secretaria de Estado da Cultura (Sedac) repasse imediatamente a verba a que eles têm direito para que possam sobreviver durante e após a enchente. Já o Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversões (Sated-RS) lançou a campanha Contrate um Artista do RS. A ideia é incentivar organizadores de eventos fora do Estado a chamarem nomes daqui.
— Há artistas em abrigos ou em casas cedidas por amigos, artistas que perderam tudo, figurino, equipamentos técnicos. Além do mais, a categoria vai ficar muito tempo sem trabalho em função dessa calamidade. A campanha é para ajudar o pessoal a se apresentar assim que possível, já que em outros Estados tudo está acontecendo normalmente. Um grupo pode ir para a casa de outro grupo, fazer temporada em diferentes cidades — disse Luciano Fernandes, presidente do Sated-RS, à repórter de GZH Karine Della Valle.
A parada não se deve apenas a questões físicas. Tirando os espetáculos solidários, os shows que levantam verbas e arrecadam doações, o prosseguimento do setor cultural pode esbarrar no estado anímico da população. Eu mesmo fiquei uns dias sem escrever colunas, apesar de filmes e séries continuarem estreando no cinema e no streaming, em respeito ao sofrimento alheio. Além de não estar com cabeça para mergulhar em uma obra de ficção, achei que soaria como um gesto de alienação ou elitismo.
Mas os cinemas, os teatros, os museus, as casas de shows, as livrarias, as editoras, os quadrinistas, o pessoal do circo e todos os artistas atingidos pelas enchentes não podem ficar para trás na reconstrução do RS.
Os benefícios trazidos pela arte podem não ser mensuráveis ou mesmo tangíveis, mas existem e são capazes de durar para sempre. Todo mundo tem guardado na memória uma cena de um filme, um personagem de um livro, uma fala dita em uma peça, uma emoção despertada por uma música.
Não raro, a cultura é encarada como supérflua. Os espetáculos e produtos culturais não são arroz e feijão, mas alimentam nosso espírito. Embora muitos não queiram enxergar, geram empregos e movimentam a economia. Não são remédios, mas ajudam a curar a fossa, o luto, a saudade.
E também podem educar, estimular, expandir horizontes. Quantos mundos e quantas realidades só conhecemos por causa de um filme ou de um livro? Não faltam obras que denunciaram violações dos direitos humanos, expuseram crimes de Estado, deram palco e voz para populações oprimidas e silenciadas. Não à toa, no passado e no presente, aqui, ali e acolá, a cultura vira alvo de censura. Se não fosse essencial, se fosse tão fútil, governos e entidades da sociedade não dariam bola, né?
Pois que agora deem mais atenção ainda.