O CineBancários, em Porto Alegre, montou uma programação especial para marcar o Dia da Consciência Negra, celebrado em 20 de novembro porque nessa data, em 1695, foi morto Zumbi, o último líder do Quilombo dos Palmares, um símbolo da resistência contra a escravidão no Brasil.
De quinta-feira (17) a quarta (23), sempre na sessão das 19h, com ingressos a R$ 12 (meia entrada para idosos, estudantes, bancários, jornalistas sindicalizados, portadores de ID Jovem e pessoas com deficiência), serão exibidos três recentes filmes brasileiros que, cada um a seu modo, lidam com a herança nefasta dos mais de 300 anos de escravatura, continuada sob a forma do racismo, da exclusão social, da violência de Estado.
Além da contemporaneidade e dos temas, os três títulos são ligados por nomes do elenco e da direção: M8 (2019) tem participação especial de Lázaro Ramos, que em Medida Provisória (2020) dirige Seu Jorge, protagonista de Marighella (2019).
Medida Provisória (2020)
Sessões nos dias 17 e 20. O primeiro longa-metragem de ficção dirigido pelo ator baiano Lázaro Ramos foi um dos eventos cinematográficos do ano: atraiu quase 500 mil espectadores. Trata-se de uma distopia à moda brasileira. Baseada na peça Namíbia, Não!, a história se passa em um futuro próximo do Brasil e tem como protagonista o ator anglo-brasileiro Alfred Enoch (o bruxo Dino Thomas na franquia Harry Potter). Ele encarna o advogado Antônio, que decide processar o Estado brasileiro, solicitando uma indenização histórica à população negra por conta da escravidão e do racismo.
A chamada reparação social custaria muito caro para os cofres públicos, então o governo federal contra-ataca. Graças a personagens como a burocrata Isabel (papel de Adriana Esteves, especialista em vilãs) e o recém-empossado ministro da Devolução, decreta-se uma medida provisória que obriga os cidadãos negros — ou melhor, cidadãos de "melanina acentuada", o tecnicismo que busca escamotear o racismo — a "voltarem" para a África. A ação violenta da polícia para apressar as expulsões gera medo e caos, mas também protestos e um movimento de resistência, o Afrobunker (por onde circula o rapper Emicida, em participação especial). Entre os resistentes, estão Antônio e seu primo, o jornalista André (vivido por Seu Jorge), confinados em seu apartamento no Rio. Mas em algum momento eles terão de sair para tentar encontrar a esposa do advogado, a médica Capitu (papel de Taís Araújo), supostamente desaparecida.
No teatro, a história era conduzida em clima de comédia absurda. No cinema, esse gênero é mesclado ao drama político e ao thriller de suspense. Por isso, Lázaro Ramos já admitiu que Medida Provisória é um filme da mesma família de Corra! (2017), que valeu ao estadunidense Jordan Peele o Oscar de roteiro original.
Marighella (2019)
Sessões nos dias 18 e 22. O ator Wagner Moura assumiu um desafio e tanto na sua estreia como diretor: a cinebiografia do guerrilheiro baiano Carlos Marighella (1911-1969), que foi deputado federal pelo PCB e cofundador, em 1967, da Ação Libertadora Nacional (ALN), grupo que praticava a oposição armada ao regime instaurado pelo golpe militar. A escalação do ator e cantor Seu Jorge como protagonista gerou burburinho em um país que tem tradição no embranquecimento de personalidades negras: houve quem reclamasse que o Moura estava querendo "empretecer Marighella". Em conversa com os jornalistas José Eduardo Bernardes e Mariana Pitasse, do Brasil de Fato, ele comentou:
— Seu Jorge, de fato, tem a pele mais escura do que a de Marighella, mas ele era preto, neto de escrava sudanesa (e filho de um imigrante italiano). Seu Jorge ser mais escuro do que Marighella não é uma questão. Ele não poderia era ser mais claro. Marighella foi um defensor da justiça social e igualdade entre as pessoas, mas nunca falou sobre a questão do racismo, porque não era uma pauta da esquerda. Também não é suficientemente hoje, como deveria ser. A esquerda não entendeu que não se pode falar de nenhuma questão social sem falar de racismo. Sem entender que o evento histórico que fundamenta nossas relações sociais é a escravidão.
O roteiro é baseado no livro Marighella: O Guerrilheiro que Incendiou o Mundo (2012), do jornalista Mário Magalhães, e se concentra nos últimos anos de vida do protagonista, de 1964 a 1969, quando o comunista que chegou a ser definido como "o inimigo número 1 do Brasil" foi assassinado por policiais. O recorte temporal atende a dois desejos de Moura. O primeiro era o de combater as narrativas que minimizam a truculência da ditadura — "Nosso filme vem para dizer que foi ruim, que foi horrível, que teve gente com coragem de enfrentar aquilo", disse em entrevistas.
O segundo era o de fazer uma obra popular, de comunicação direta com a faixa etária que forma a maioria das plateias, aquela dos 16 aos 24, 25, 26 anos. É por isso que os letreiros iniciais, que acompanham imagens da violenta repressão a manifestações pós-golpe, enfatizam a participação dos estudantes na resistência. É por isso que o elenco apresenta coadjuvantes como Bella (interpretada por Bella Camero) e Humberto (vivido por Humberto Carrão), que dão rosto à juventude revolucionária da época. É por isso que Marighella é tiro, porrada e bomba — o cineasta estreante investe bastante nos códigos dos filmes de ação. Foi o maior vencedor da última edição do Grande Prêmio do Cinema Brasileiro, faturando oito troféus, incluindo os de melhor filme, diretor estreante e ator.
M8: Quando a Morte Socorre a Vida (2019)
Sessões nos dias 19 e 23. Vencedor dos troféus de melhor diretor e roteiro adaptado no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro, M8 foi dirigido por Jeferson De, criador do Dogma Feijoada — versão do Dogma 95, movimento estético dinamarquês que pregava um cinema mais realista. O manifesto do cineasta paulista estipulava que: diretor e protagonista devem ser negros; a temática tem de estar relacionada à cultura afro-brasileira; personagens estereotipados estão proibidos; e super-heróis e bandidos devem ser evitados.
Autor de Bróder (2010), Correndo Atrás (2018) e Doutor Gama (2021), Jeferson vem expandindo o Dogma Feijoada: ao experimentar gêneros distintos, ele mostra que não existe "um" cinema negro. Há vários, embora todos carreguem um posicionamento político. Em M8, ele envereda pelo suspense sobrenatural, mas tratando de problemas bem reais. O racismo estrutural é o alvo nesta adaptação do romance homônimo de Salomão Polak. O personagem principal, Maurício (interpretado por Juan Paiva), é o único negro na turma de Medicina de uma faculdade do Rio. Na aula de anatomia, ele fica intrigado pelo fato de todos os corpos serem de pessoas negras. Tem mais a ver com os mortos do que com os vivos, reflete o filho de uma auxiliar de enfermagem.
O elemento fantástico logo dá as caras (mas não espere algo como Corra! ou O que Ficou para Trás, a pegada é mais leve): Maurício passa a ter alucinações a respeito de um dos cadáveres, o M8 do título. O jovem não vai sossegar até encontrar a identidade daquele homem, como não sossegam as mães negras enquanto não encontram os corpos de seus filhos, tombados pela violência do tráfico ou da polícia.
No meio da jornada, Maurício vai se envolver com uma colega branca (Suzana, papel de Giulia Gayoso), discutir as cotas raciais nas universidades, sofrer com o preconceito ostensivo e o quase velado, aprender algo sobre ancestralidade e religiosidade e lidar com sua própria revolta. Em uma participação silenciosa, Lázaro Ramos conduz M8 a um antológico final, marcado por morte, dor e indignação, mas também por afeto, união e respeito.