Engana-se quem pensa que O Enfermeiro da Noite (The Good Nurse, 2022), filme com Jessica Chastain e Eddie Redmayne em cartaz na Netflix desde quarta-feira (26), é apenas mais uma obra sobre serial killers da vida real a ser lançada pela plataforma de streaming neste ano, na esteira da minissérie Dahmer: um Canibal Americano e do documentário O Palhaço Assassino.
Baseado no livro O Enfermeiro da Noite: uma História Real de Medicina, Loucura e Assassinato, lançado pelo jornalista Charles Graeber em 2013, o longa-metragem teve o roteiro escrito pela inglesa Kristy Wilson-Cairns, indicada ao Oscar, ao lado de Sam Mendes, por 1917 (2019), e coautora, com Edgar Wright, de Noite Passada em Soho (2021). A direção coube ao dinamarquês Tobias Lindholm, realizador de Guerra (2015), que disputou o Oscar de melhor filme internacional, e habitual parceiro do cineasta Thomas Vinterberg — fizeram juntos Submarino (2010), A Caça (2012), A Comunidade (2016) e Druk: Mais uma Rodada (2020).
O Enfermeiro da Noite é um filme sobre um assassino em série diferente de quase todos que você já viu.
O duplo sentido da frase acima é proposital. Em primeiro lugar, estamos diante de um serial killer sui generis. Hoje com 62 anos, Charles Cullen jamais usou uma arma de fogo, uma faca ou uma corda para matar suas vítimas — cujo número pode ultrapassar a marca de 300, tornando o enfermeiro estadunidense um dos mais letais homicidas seriais da história (no ranking da maldade, rivalizaria com os estupradores e matadores de crianças colombianos Pedro López, o Monstro dos Andes, que agiu entre 1969 e 1980, e Luis Garavito, La Bestia, que atuou entre 1992 e 1999). O que Cullen fazia, entre o final da década de 1980 e o início da era 2000, era provocar overdoses de insulina ou digoxina em pacientes dos diversos hospitais onde trabalhou.
Em segundo lugar, estamos diante de um filme que evita convenções e pecados desse subgênero tão popular.
O Enfermeiro da Noite não adota a perspectiva do assassino interpretado pelo britânico Redmayne, ganhador do Oscar de melhor ator por A Teoria de Tudo (2014) e indicado por A Garota Dinamarquesa (2015), nem a das vítimas, nem a da polícia (embora os detetives encarnados com ironia por Noah Emmerich e com indignação por Nnamdi Asomugha mereçam destaque). A trama é contada pelo ponto de vista de uma colega de enfermagem que passa a suspeitar de Cullen, Amy Loughren, mãe solteira de duas meninas que, aos olhos de todos, é a empregada mais afetuosa; às escondidas do hospital, sofre de cardiomiopatia. É esse o papel da californiana Chastain, oscarizada como melhor atriz por Os Olhos de Tammy Faye (2021) após concorrer por Histórias Cruzadas (2011, como coadjuvante) e A Hora Mais Escura (2012). (Vale dizer que os dois atores estão ótimos, trabalhando com nuances e contenção, o que valoriza os momentos de aflição ou destempero.)
O Enfermeiro da Noite não glamoriza o personagem, tampouco sugere que tenhamos algum tipo de empatia. Por mais que ele seja querido com Amy e as filhas dela, há sempre um travo rancoroso no modo como fala de sua ex-esposa, por exemplo.
O Enfermeiro da Noite não tenta justificar seus crimes nem compartilhar a culpa com a família, a sociedade, o Estado — ainda que na história de Cullen, como esta versão ficcional mostra, leis estaduais e políticas corporativistas tenham contribuído para que ele seguisse matando.
E O Enfermeiro da Noite não exibe seus atos de violência — no máximo, como na cena de abertura, vemos a apreensão de seu rosto dar lugar ao que parece ser um esgar de satisfação enquanto uma equipe médica, fora de quadro, luta para salvar um paciente.