Em um movimento que testa o apelo de público tanto do Oscar quanto do cinema, No Ritmo do Coração (2021) — ganhador do prêmio de melhor filme no domingo (27) e disponível na plataforma de streaming Amazon Prime Video e para aluguel na Apple TV — volta a cartaz nesta quinta-feira (31) em 80 salas de 17 Estados brasileiros. No Rio Grande do Sul, o Cine Grand Café, o Cinemark BarraShopping e o GNC Moinhos, em Porto Alegre, vão exibir o título que também recebeu da Academia de Hollywood as estatuetas douradas de roteiro adaptado (assinado pela diretora Siân Heder) e ator coadjuvante (Troy Kotsur).
Pelo segundo ano seguido, um filme sobre surdez se destacou nas grandes premiações. Na temporada passada, O Som do Silêncio (2019) foi oscarizado em edição e som e valeu ao ator Riz Ahmed indicações ao Oscar, ao Bafta (da Academia Britânica), ao SAG Awards (do Sindicato dos Atores dos EUA) e ao Globo de Ouro. No Ritmo do Coração — cujo título original é CODA, sigla de Child of Deaf Adults, filho de pais surdos — tem no currículo dois Baftas (roteiro adaptado e ator coadjuvante), dois SAG Awards (melhor elenco e ator coadjuvante), o PGA Awards (da Associação dos Produtores) de melhor filme e quatro troféus no Festival de Sundance, incluindo o de direção e o da audiência.
No Ritmo do Coração teve 100% de aproveitamento no Oscar, conquistando as três categorias que disputava — seu principal rival no troféu de melhor filme, Ataque dos Cães, era o campeão de indicações, com 12, mas só ganhou em direção (Jane Campion). Eu admito: se fosse integrante da Academia, teria votado no título derrotado. Acho o faroeste tardio e desconstrutivo superior em qualidade cinematográfica e com mais ressonância. Forma e conteúdo se combinam: para tratar do atrito e da atração entre personagens ambíguos, para abordar desejos reprimidos e masculinidade tóxica, Ataque dos Cães mostra-se um filme extremamente tátil, pleno de silêncios e de interditos, marcado por olhares às vezes furtivos, às vezes eloquentes.
No Ritmo do Coração tem, sim, uma narrativa mais convencional. Talvez tenha vencido com um empurrão do espírito de nosso tempo. A votação do Oscar foi realizada entre os dias 17 e 22 de março. O contexto da guerra na Ucrânia — a invasão do país pela Rússia completou um mês na quinta-feira (24) — pode ter influenciado os membros da Academia a elegerem um filme solar e otimista, em detrimento de uma obra amarga e árida.
Também é um filme absolutamente eficiente na comunicação com o público. Aliás, como Troy Kotsur lembrou no discurso de agradecimento, No Ritmo do Coração é justamente sobre comunicação. Nas palavras do ator, a diretora e roteirista Siân Heder conseguiu criar a ponte entre o mundo dos surdos (do qual ele faz parte) e o mundo dos ouvintes (do qual ela faz parte).
Criar pode ser um verbo exagerado, pois No Ritmo do Coração é baseado em outro filme, o francês A Família Bélier (2014). A premissa é a mesma, trocando uma fazenda por uma cidade pesqueira: única ouvinte e falante entre os Rossi, a adolescente Ruby (papel de Emilia Jones, a Kinsey da série Locke & Key) serve de intérprete nos negócios e em tarefas cotidianas. Ela se sente excluída tanto em casa quanto na escola, por causa da classe social e pela condição familiar. Atraída por um colega de escola que canta, Miles (Ferdia Walsh-Peelo, o Alfred do seriado Vikings), resolve se inscrever nas aulas do coral comandado pelo professor Bernardo Villalobos (o mexicano Eugenio Derbez, equilibrando humor, rabugice e ternura).
A situação acabará criando um dilema doloroso para Ruby, abrindo portas para temas como amadurecimento e pertencimento. Também convida à empatia — você já parou para pensar em como a música é percebida pelos surdos? Ou melhor ainda: já se colocou no lugar de alguém impedido de participar das animadas conversas de seu grupo de amigos/colegas?
Refilmagens de obras tão recentes parecem só existir por causa da resistência dos espectadores estadunidenses às legendas, mas neste caso vale dizer que, além da troca de pérolas do cancioneiro francês por joias em inglês como You're All I Need to Get By (de Marvin Gaye e Tammi Terrell) e Both Sides Now (de Joni Mitchell), há um significativo avanço em termos de representatividade. No original, os personagens com deficiência auditiva eram interpretados por atores que escutam. Em No Ritmo do Coração, são surdos Troy Kotsur, que encarna o pai de Ruby, Frank Rossi, ora turrão, ora terno; Marlee Matlin, vencedora do Oscar de melhor atriz por Filhos do Silêncio (1986), que faz a mãe, Jackie; e Daniel Durant, que é Leo, o irmão mais velho.
Há quem considere CODA uma "cópia" inferior de A Família Bélier. Mas o preconceito maior parece ser contra o caráter emocional. Contra a capacidade que No Ritmo do Coração tem de nos tocar, de nos engajar e de nos fazer chorar, às vezes sem sabermos se de tristeza ou de alegria.
Por que rejeitamos a emoção? Talvez porque revele nossa fragilidade. Nossa pequenez como seres humanos que, como os personagens de No Ritmo do Coração, querem ser acolhidos e compreendidos, querem poder sonhar e buscar a realização desses sonhos. Parafraseando o pai encarnado por Troy Kotsur em cena, "Vai" — vá ao cinema e deixe-se arrepiar pelo que a vida tem de mais precioso: a conexão com os outros.