No meio da enxurrada de filmes oferecidos pelas plataformas de streaming, às vezes tesouros podem passar despercebidos.
Pode acontecer até com indicados ao Oscar, especialmente se forem de categorias menos badaladas, como a de melhor documentário. Ou com obras estreladas por nomes famosos.
A lista deste fim de semana traz 10 títulos recentes (de 2020 para cá para cá) que talvez não tenham tido o reconhecimento merecido. Alguns eu já indiquei na coluna — clique nos links para ler mais.
Nove Dias (2020)
Drama sobrenatural escrito e dirigido por um estreante em longas, o nipo-brasileiro radicado em Los Angeles Edson Oda, com o modesto orçamento de US$ 10 milhões — nas bilheterias, não arrecadou nem 10% disso (ficou em US$ 906,8 mil). O curioso é que Nove Dias traz no elenco atores e atrizes vistos em superproduções de Hollywood que atraíram multidões aos cinemas: Winston Duke (Pantera Negra e Vingadores: Ultimato), Zazie Beetz (Deadpool 2 e Coringa), Benedict Wong (o mago Wong da Marvel) e Bill Skarsgård (It: A Coisa). Vencedor do prêmio de melhor roteiro no Festival de Sundance, faz uma espécie de mistura entre o japonês Depois da Vida (1998) — uma inspiração assumida por Edson Oda — e Soul (2020), a oscarizada animação da Pixar. Os três filmes combinam criatividade, delicadeza e toques de ficção científica e de metalinguagem em nome de uma ambiciosa pretensão artística: desvendar o sentido da vida, retratar aquilo que nos configura como seres humanos, mostrar o que existe "do outro lado". Aqui, o personagem principal é Will, que, via fitas VHS exibidas em aparelhos antigos de TV, acompanha a vida pelo olhar de pessoas como uma talentosa jovem violinista, um garoto que sofre bullying na escola, uma noiva às vésperas do casamento e um policial que ficou paraplégico. Quando uma dessas pessoas morre inesperadamente, cabe a Will escolher uma nova alma para encarnar e ocupar a vaga aberta no plano da existência. O processo de entrevistas e provas dura os nove dias referidos no título. (Disponível para aluguel ou compra em Apple TV, Google Play e YouTube)
O Refúgio (2020)
Mistura chique de drama e suspense, é um filme ambientado na Inglaterra da década de 1980 que poderia se passar em qualquer lugar do Ocidente e em qualquer época da História. Na verdade, não fosse a trilha sonora calcada em bandas oitentistas britânicas — New Order, The Cure, Bronski Beat/The Communards, Thompson Twins —, não fossem as referências a personagens marcantes e assuntos quentes daqueles tempos, como o presidente dos Estados Unidos Ronald Reagan e o mercado de petróleo, não fossem as ausências dos celulares e das redes sociais, a trama escrita e dirigida pelo canadense Sean Durkin poderia estar acontecendo agora e aqui. O Refúgio traz Jude Law no papel de Rory O'Hara, um carismático empreendedor britânico que, depois de 10 anos morando em Nova York, decide que é hora de retornar à terra natal. A contragosto, sua esposa, Allison (papel de Carrie Coon), muda-se com ele e os dois filhos para uma mansão nos arredores de Londres. Absurdamente desproporcional para quatro pessoas, a casa é um personagem à parte. Quase como se fosse mal-assombrada, reflete, a um só tempo, a ambição desmedida de Rory, o afastamento familiar e, com seus quartos e corredores escuros, o ensombrecimento das almas de seus moradores. Bonita por fora e decadente por dentro, simboliza a grande pergunta do filme: o que acontece com uma vida calcada em mentiras e aparências quando a verdade começa a vir à tona? (Amazon Prime Video)
Tempo de Caça (2020)
O filme escrito e dirigido por Yoon Sung-hyun se passa em um futuro próximo, em que a crise financeira derrubou a Coreia do Sul — os cenários são zonas industriais decadentes, favelas e ocupações, bem familiares para o público brasileiro. O protagonista, Jun Seok (Lee Je-hoon), é um jovem que, após três anos de prisão, reencontra os amigos Ki Hoon (Choi Woo-shik, o filho pobre de Parasita) e Jang Ho (Ahn Jae-hong) e elabora um plano: assaltar um cassino clandestino e fugirem todos para um local tipo o Havaí, mais caloroso e colorido do que a realidade fria e cinzenta. Mas eles acabam entrando na mira de um assassino impiedoso (Park Hae-soo) — que pode ser encarado como a consciência de Jun Seok de que o sistema não permite ascensão, ou de que, como diz o pai pobre em Parasita, a vida nunca funciona como o sonhado para pessoas como eles ("O melhor plano é não ter planos", afirma Ki-taek no filme oscarizado. "Sem planos, nada pode dar errado. Se algo fugir do controle, não importa"). A estética e o ritmo narrativo são personagens à parte em Tempo de Caça. Em uma cenografia inóspita, com um jogo de luzes que traduz o "sentimento" da cena e uma sonorização opressiva (cada toque no corpo se faz ouvir), a trama, em seu início, é conduzida lentamente. Há um propósito: os laços entre os "ladrões por sobrevivência" precisam estar bem reconstituídos, porque é isso o que pode sustentá-los quando a noite cair sobre eles. (Netflix)
Ascensão (2021)
É um dos cinco indicados ao Oscar de melhor documentário. Estadunidense de mãe chinesa, a produtora e diretora Jessica Kingdon estreia no comando de um longa-metragem com este filme observacional — não há entrevistas nem narrações. Ela viajou por 51 locações na China para retratar cenas cotidianas, estruturadas em três temas: trabalho, consumismo e lazer. Em uma jornada visual fascinante, Ascensão demonstra o progresso econômico e a divisão de classes cada vez maior. Começa com as hordas de trabalhadores buscando empregos de baixa remuneração. Depois veremos, entre outros cenários, a linha de montagem de bonecas sexuais de última geração, um curso de boas maneiras nos negócios, escolas de guarda-costas e de mordomos e um imenso e lotadíssimo parque aquático. (Paramount+)
Duas Tias Loucas de Férias (2021)
Indicadas ao Oscar de melhor roteiro original por Missão Madrinha de Casamento (2011), Kristen Wiig e Annie Mumolo reúnem-se novamente no script de Barb and Star Go to Vista Del Mar. Sob direção de Josh Greenbaum e sem medo de brincarem com o sexo ou o absurdo, Kristen e Annie interpretam duas amigas que deixam sua cidade no Meio-Oeste pela primeira vez e se envolvem em uma trama de crime e romance na Flórida. Jamie Dornan, o Christian Grey do erótico 50 Tons de Cinza, o assassino serial do ótimo seriado The Fall e o Pai do drama concorrente ao Oscar Belfast, mostra seu desprendimento para o humor. (HBO Max)
Escrevendo com Fogo (2021)
É outro dos cinco concorrentes ao Oscar de documentário. Dirigido por Rintu Thomas e Sushmit Ghosh, começa explicando, em um letreiro, o sistema de castas da Índia. À margem da hierarquia, estão os dalits: os párias, os impuros, os intocáveis. São dalits as editoras e repórteres do Khabar Lahariya, único veículo de comunicação indiano com comando feminino e foco do filme. Foi fundado em maio de 2002, com sede no Estado mais populoso do país, Uttar Pradesh, situado ao norte e notório pelos crimes contra as mulheres.
No início de Escrevendo com Fogo, Meera Devi, repórter-chefe do Khabar Lahariya, está em trabalho de apuração. Na companhia do marido, uma mulher enumera os dias do mês de janeiro nos quais foi estuprada por homens que invadiram sua casa quando ela estava sozinha: 10, 16, 18, 19... A polícia não quis abrir inquérito, diz o casal. Na delegacia, um oficial afirma a Meera que desconhece o caso. (Consta que apenas um a cada quatro denúncias termina em condenação na Índia, país que costuma chocar o mundo com episódios de estupro coletivo, conforme visto no filme de ficção Mom e na série policial Crimes em Déli.) (Disponível para compra ou aluguel em Apple TV, Claro Now, Google Play, Vivo Play e YouTube)
A Noite do Fogo (2021)
Ganhou menção honrosa na mostra Um Certo Olhar do Festival de Cannes e foi semifinalista do Oscar de melhor filme internacional, representando o México. Também valeu a Tatiana Huezo uma indicação ao troféu do Sindicato dos Diretores dos EUA na categoria de estreante, embora ela não seja: assinou os documentários El Lugar más Pequeño (2011) e Tempestade (2016). Há semelhanças temáticas e estilísticas entre as três obras. Em A Noite do Fogo, Huezo observa o cotidiano de um povoado violentado pelo narcotráfico pelos olhos de três meninas: Ana (vivida por Ana Cristina Ordóñez González na infância e por Marya Membreño na adolescência), Maria (Blanca Itzel Pérez/Giselle Barrera Sánchez) e Paula (Camila Gaal/Alejandra Camacho). O perigo e a morte estão sempre nas redondezas, o silêncio e a fuga são aliados vitais, o medo dita os passos — sobretudo os das mães e os das filhas, como enfatiza o título brasileiro do romance em que a ficção se baseia: Reze pelas Mulheres Roubadas. (Netflix)
The Rescue (2021)
Semifinalista do Oscar de melhor documentário, é dirigido pelo casal Jimmy Chin e Elizabeth Chai Vasarhelyi, que em 2019 ganharam o troféu da categoria com Free Solo. Agora, eles reconstituem o salvamento do time de futebol juvenil que, em 2018, ficou preso em uma caverna da Tailândia quando a chuva provocou a inundação do lugar. Os diretores tinham dois desafios: como gerar novidade e tensão se o final da história é conhecido no mundo inteiro, que acompanhou o drama pela imprensa e pelas redes sociais? E como contar essa história sem a versão dos meninos e do treinador, que negociaram os direitos de produção para uma série de ficção da Netflix? O primeiro desafio foi vencido graças ao acesso a 87 horas inéditas de gravações feitas pela Marinha da Tailândia. Mas foi no segundo desafio que The Rescue transformou um limão em limonada. Sem o ponto de vista dos sobreviventes e de seus familiares, os cineastas investiram nos heróis do resgate. Os homens que assumiram riscos em meio às passagens muito estreitas e às águas muito escuras da caverna. Gente como um bombeiro aposentado, um consultor de TI, um meteorologista e um anestesista. Na primeira impressão, pode até parecer que o documentário gasta tempo demais com a história de vida dos mergulhadores, mas aos poucos a gente vai entendendo o sentido e, no final, o passado deles vem literalmente à tona. (Disney+)
Fresh (2022)
Caberia bem em um Fantaspoa, cuja 18ª edição será realizada de 15 de abril a 1º de maio. Tem um orçamento pequeno, pelo menos para os padrões dos EUA; traz a assinatura de uma diretora estreante (Mimi Cave), duas condições que, combinadas ou separadamente, são comuns no Festival de Cinema Fantástico de Porto Alegre; seus dois atores principais, Daisy Edgar-Jones (da série Normal People) e Sebastian Stan (o Soldado Invernal da Marvel), não têm pudores para abraçar o bizarro; e o filme arrisca-se à mescla de gêneros — no caso, o suspense policial, o terror e a comédia. Mais não dá para dizer, porque Fresh é um prato que, quanto menos soubermos de seus ingredientes, mais poderemos degustá-lo. Mas também pode ser que nos repugne, por causa do tema abordado: a violência contra as mulheres (Star+)
Perfeitos Desconhecidos (2022)
Trata-se de uma das muitas versões internacionais da homônima comédia dramática italiana lançada em 2016 pelo cineasta Paolo Genovese. Já houve adaptações na Alemanha, na China, na Espanha, na Grécia, na República Tcheca... Esta aqui merece destaque porque é a primeira produção árabe da Netflix — e porque causou polêmica no Oriente Médio desde seu lançamento, no final de janeiro. Os motivos, cabe ao espectador descobrir: revelá-los seria dar spoiler a quem ainda não conhece a história. Com direção do libanês Wissam Smayra, o filme acompanha um grupo de sete amigos (incluindo três casais) que, durante um jantar, concorda em participar de um jogo perigoso: eles deixam os celulares desbloqueados na mesa, expondo-se ao risco de ligações e mensagens revelarem segredos, traições e quetais. Perfeitos Desconhecidos consegue equilibrar bem as doses de humor e de drama, fazendo um retrato do carinho e da hipocrisia que podem coexistir em um relacionamento. O elenco conta com Nadine Labaki, diretora de Cafarnaum (2018), que ganhou prêmios no Festival de Cannes e concorreu ao Oscar, ao Globo de Ouro e ao Bafta de melhor filme internacional, a estrela egípcia Mona Zaki e Eyad Nassar (o Amin da minissérie The Looming Tower). (Netflix)