Um letreiro avisa no começo de A Nuvem Rosa, que entra em pré-estreia nesta quinta-feira (26) nos cinemas Espaço Itaú 8 (às 19h20min), GNC Moinhos 1 (às 21h45min), Farol Santander (às 15h e às 17h30min) e Sala Eduardo Hirtz (às 14h30min e às 18h30min), em Porto Alegre: "Este filme foi escrito em 2017 e realizado em 2019. Qualquer semelhança com fatos reais é mera coincidência". Ou seja: ao retratar muitas situações e muitos comportamentos que se tornaram comuns ao longo destes 20 meses de pandemia — provocadas, na tela, pelo misterioso surgimento da letal nuvem rosa do título, contra a qual não há máscara que ajude —, o primeiro longa-metragem da diretora gaúcha Iuli Gerbase, 31 anos, alinha-se a outras obras premonitórias da era covid-19.
Trata-se, portanto, de uma ficção científica, mas que está muito mais próxima do argentino Tóxico (2020), do que do estadunidense Contágio (2011), de Steven Soderbergh, ou do sul-coreano A Gripe (2013). Interessam a Iuli os conflitos psicológicos, não as batalhas práticas da busca por uma cura, por exemplo. Não há o investimento na ação e na violência que sucedem as reflexões do canadense O Declínio (2020), e tampouco o ritmo é o de uma corrida contra o tempo. Pelo contrário: pode-se dizer que A Nuvem Rosa deixa o tempo correr inexoravelmente.
Filha do cineasta Carlos Gerbase e da produtora Luciana Tomasi, diretora de curtas como Férias (2013), Dia das Nações (2018) e A Pedra (2019), Iuli disse ao repórter William Mansque, de GZH, que o elemento pandêmico foi até secundário na elaboração do roteiro. Seu primeiro objetivo era trabalhar com limites, explorar sua criatividade diante de barreiras que colocaria para si. Daí veio a ideia de rodar um filme com poucos personagens e poucas locações, ela contou na entrevista concedida em janeiro de 2021, à época da estreia mundial de A Nuvem Rosa, dentro da categoria World Dramatic do prestigiado Festival de Sundance, nos Estados Unidos. De lá para cá, o filme circulou por outros festivais, como o de Miami, o de Xangai, o de Munique, o da Transilvânia e o de Sofia, na Bulgária, onde conquistou o principal prêmio.
A história está ambientada em Porto Alegre, mas, fora algumas cenas iniciais, como aquela na beira do Guaíba, onde conhecemos o poder aniquilador e imediato (10 segundos, informará a imprensa) da nuvem rosa, a cidade praticamente só é vista através das janelas — fechadas — de um apartamento de cobertura. Nesse cenário, estão confinados os dois personagens principais. Giovana (interpretada por Renata de Lélis) e Yago (papel de Eduardo Mendonça) tinham acabado de se conhecer quando a pandemia impôs o confinamento total. Dormiram juntos após uma balada e acordaram forçados a serem um casal.
Sendo assim, A Nuvem Rosa forma uma espécie de dobradinha com outro filme intimista lançado nos tempos de coronavírus — mas este, sim, pensado e produzido já sob a égide da doença: Malcolm & Marie (2021), em cartaz na Netflix. No título do estadunidense Sam Levinson, Zendaya e John David Washington encarnam namorados que, transitando pelos cômodos de uma única casa, dão início a uma longa discussão sobre o relacionamento. Sua DR espelha aquelas que devem ter ocorrido com muitos casais da vida real quando se viram obrigados a ficar o tempo todo juntos.
Giovana e Yago estão em um estágio diferente. Primeiro, precisam se acostumar com o novo status, vencer o estranhamento à medida que descobrem afinidades, encontrar o amor e o companheirismo. Mas suas personalidades não são harmônicas, seus interesses não são os mesmos. Ela sofre mais com a falta de liberdade imposta pela nuvem, ele vai criando estratégias para manter a sanidade e combater o tédio. Giovana não quer ser mãe, Yago quer ter dois filhos.
— Então fechamos pelo meio, um filho — ele brinca.
É um dos momentos de alívio cômico em um filme que, se não chega a ser sufocante, mostra personagens — incluindo os coadjuvantes que aparecem em videochamadas — à mercê da angústia, do desânimo e até de alguns perigos mais físicos. A direção de fotografia de Bruno Polidoro, a edição de Vicente Moreno e a trilha sonora composta por Caio Amon se complementam na criação de uma atmosfera que alterna o risco e a mesmice, a suspensão e a passagem do tempo, alegrias e frustrações.
Ainda que as atuações de Renata de Lélis (mais intensa) e Eduardo Mendonça (mais blasé) careçam de pungência e de brilhantismo, a dinâmica entre Giovana e Yago é temperada por surpresas lançadas pelo roteiro de Iuli Gerbase, o que contribui para manter o público envolvido pela porção drama psicológico de A Nuvem Rosa. Quando envereda pelo lado ficção científica, quando faz os personagens entrarem em contato com o mundo lá fora, o filme acaba distraindo o espectador com questões que não surgiriam caso a própria trama não tivesse chamado a atenção para elas — tipo: se ninguém pode sair para a rua, se ninguém pôde deixar o lugar onde estava quando apareceu a nuvem tóxica, como as indústrias continuaram produzindo? Quem instalou os tubos que levam comida e remédios às casas?
Mas Iuli não perde muito tempo com esses pontos, então logo A Nuvem Rosa volta a concentrar-se naquilo que realmente interessa à jovem cineasta: como reagimos a uma ameaça do porte de uma pandemia? Ou diante de uma ditadura política extremamente restritiva? Como encontramos um equilíbrio mental? Podemos nos tornar mais autossuficientes? Ou a saída é pelo caminho da alienação? Algo de bom é capaz de nascer em um período ruim? Quando acaba o amor, como é que fica? Quando acaba a esperança, para onde vamos?