O Dia do Cinema Brasileiro é comemorado na sexta-feira, 19 de junho - nesta data, em 1898, o italiano Afonso Segreto, que vinha da França com destino ao Rio de janeiro, registrou imagens da Baía de Guanabara, as primeiras filmadas em território nacional.
Em homenagem, a rede Telecine vai promover, nesta quinta (18), uma sessão online gratuita de Bacurau, dirigido por Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. A sessão será às 20h, pelo canal do Telecine no YouTube.
É a chance de rever ou de conhecer um dos filmes brasileiros mais falados do ano passado, quando dividiu o Prêmio Especial do Júri no Festival de Cannes com a produção francesa Os Miseráveis, recebeu troféus em mostras na Alemanha, na Espanha, no Peru, no Canadá e nos Estados Unidos e atraiu um público de 740 mil espectadores ao cinemas.
A história se passa na homônima e fictícia (mas fidedigna) cidadezinha do sertão pernambucano, onde um grupo de americanos empreende uma caçada humana. A certa altura, uma moradora pergunta: "Por que vocês estão fazendo isso?".
O espectador mais habituado ao didatismo de Hollywood – que cedo ou tarde explica, textualmente, motivações, episódios e desdobramentos – pode ficar meio desacorçoado diante do vigoroso filme dirigido por Kleber e Juliano, mesmo que, ironicamente, eles recorram a vários elementos característicos do cinema de gênero produzido nos Estados Unidos, sobretudo o faroeste e o policial, mas também o horror e a ficção científica de cineastas como John Carpenter (referenciado nos créditos de abertura, no drone que parece um disco voador e na trilha sonora). As coisas não são sempre ditas pela boca dos personagens, mas a todo instante um discurso político impregna cenas e cenários, cheios de sentido e significado, simbolismo e sentimento.
Em entrevista a GaúchaZH, Kleber Mendonça Filho disse que Bacurau é um filme sobre a relação do Nordeste com o Brasil, e do Brasil com o mundo. O longa-metragem começa justamente colocando o Brasil e o Nordeste no mundo. Contudo, no globo terrestre mostrado pelos diretores, apenas os países vizinhos estão iluminados. No futuro imaginado pelos diretores – o filme se passa "daqui a alguns anos", como um letreiro logo avisa –, o Brasil tornou-se um grande deserto. Não apenas geográfico, mas de ideias e de emoções. Nossos cérebros e corações estão apagados. Falta inteligência e falta empatia.
A cena de abertura reforça a visão do Brasil como um país abandonado (aliás, chega a ser irônico que, hoje, a reputação do país esteja tão arranhada no resto do mundo). A bordo do caminhão-pipa que leva água e Teresa (interpretada por Barbara Colen) de volta a Bacurau, passamos pelas ruínas de uma escola municipal (mais adiante na trama, veremos um carro de polícia enferrujado, outro símbolo da falência do Estado) e, literalmente, atropelamos caixões que caíram pela estrada – é a morte em abundância, a morte banalizada.
Teresa retornou para o enterro da avó, Dona Carmelita (Lia de Itamaracá, uma famosa cirandeira de Pernambuco), que reuniu todos os habitantes, em uma sinalização sobre a importância da preservação da memória. Sua mala passa de mãos em mãos até ser acomodada dentro de casa. É um gesto que estabelece e dá rosto ao protagonismo coletivo de Bacurau. Se no filme anterior de Mendonça Filho, Aquarius (2016), a personagem principal era uma burguesa que lutava sozinha, agora a resistência é compartilhada por toda sorte de tipos marginalizados: somam-se às mulheres os negros, os nordestinos, os indígenas, os professores, as prostitutas, os homossexuais (como a médica lésbica vivida por Sônia Braga), transexuais e até mesmo bandidos.
Os vilões da história são aqueles que costumam ser os mocinhos em boa parte dos títulos exibidos nas salas do país: os americanos. O estranhamento é reforçado na versão dublada de Bacurau, em que o elenco estrangeiro ganha vozes que o público reconhecerá de filmes, desenhos animados e seriados nos quais estão do lado do bem – Mauro Ramos, por exemplo, fez o Sulley de Monstros S.A. e o Pumba de O Rei Leão, Carol Valença é a Supergirl da série homônima, Márcio Araújo empresta seu talento ao Homem-Formiga no universo cinematográfico da Marvel. De uma tacada só, Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles criticam o que veem como subserviência política, econômica e cultural do Brasil em relação aos Estados Unidos.
Para realizar seu safári humano, o grupo de assassinos americanos liderado pelo alemão Michael (o veterano Udo Kier, sempre aterrador com seus frios mas intensos olhos azuis) conta com a colaboração de dois brasileiros oportunistas – vindos do Sul, eles frisam – e o apoio do prefeito Tony Júnior (que parece viver em uma realidade paralela, a da elite, e que, em nome de votos, distribui alimentos com prazo de validade vencidos e remédios tarja preta à população). O controle também é tecnológico: graças a drones, a trupe observa o dia a dia dos moradores (como se fossem as empresas que acompanham cotidianamente nossos passos digitais), e Michael chega a riscar Bacurau do Google Maps.
Em contraponto à invasão americana, Bacurau investe em uma brasilidade tipicamente nordestina, do suco de caju ao repentista, ainda que temperados pelo sincretismo – outra marca nacional difundida a partir da região (principalmente, da Bahia). Em uma bela cena de capoeira, que ilustra a comunhão dos bacurauenses, a sonoridade afro-brasileira logo dá lugar aos sintetizadores de Night, do cineasta e compositor americano John Carpenter. A cidade abraça as trocas culturais, mas também celebra seus heróis da resistência – do paraibano Geraldo Vandré, ícone das canções de protesto na época da ditadura militar, presente na trilha sonora, ao pernambucano Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, mais célebre cangaceiro da história, evocado em Lunga, personagem trans que o cearense Silvero Pereira encarna com paixão. Há uma confluência entre brutalidade e sensibilidade em Lunga: assim como Lampião, corta cabeças; assim como Lampião, era alfabetizado – o Rei do Cangaço do século 21 "escreve textos muito bonitos", diz o professor Plínio (Wilson Rabelo).
Atenção: se você ainda não viu Bacurau, o parágrafo abaixo pode conter spoilers.
É Lunga quem comanda o sangrento desfecho de Bacurau, que, em meio à violência dos personagens, tem pelo menos dois detalhes cenográficos que merecem sua atenção. Em uma televisão, uma manchete de um canal noticioso anuncia que "execuções públicas recomeçam às 14h no Anhangabaú" – o espaço tradicional de shows e comícios no centro de São Paulo virou palco da barbárie institucionalizada. Os lugares onde a população de Bacurau se protege e se arma para enfrentar os invasores são bastante expressivos: uma escola e um museu. Educação, cultura e memória significam a sobrevivência de um povo.