Cientista político e pesquisador na Universidade de Harvard, uma das mais prestigiadas instituições de ensino norte-americanas, o brasileiro Hussein Kalout analisa com preocupação a erosão da imagem do Brasil no Exterior, explícita em manchetes e editoriais de jornais internacionais nos últimos dias.
O professor afirma que é com um misto de espanto e curiosidade que pesquisadores da universidade, com sede em Cambridge, Massachusetts, questionam sobre o que está ocorrendo com o Brasil, que vive uma crise tripla: de saúde, provocada pelo coronavírus, econômica e política. Nesta entrevista à coluna, ele destaca a tradição da diplomacia brasileira, de apresentar o país como pacífico, conciliador e participante de consensos internacionais, algo que, segundo ele, está deixando de existir diante da nova política externa.
Kalout é formado pela Universidade de Brasília (UNB), especialista em política internacional e Oriente Médio, foi consultor da ONU e o primeiro latino-americano a integrar o Advisory Board da Harvard International Review. O pesquisador também foi secretário de Assuntos Estratégicos da Presidência no governo Michel Temer. Por telefone, Kalout conversou com a coluna sobre como o Brasil é visto no Exterior e como recuperar a imagem desgastada pela gestão da pandemia.
Nas últimas semanas, há várias manchetes de jornais internacionais sobre o aumento dos casos de coronavírus no Brasil e editoriais apontando para uma crise de saúde, econômica e política no país. Na sua avaliação, como o Brasil está sendo visto pelo mundo?
A imagem de um país é a semelhança e o retrato de seu governo. A imagem do governo é ruim, repleta de arranhaduras e isso acaba sendo plasmado no Exterior. Obviamente, o estilo de governança adotado pelo presidente não é um estilo muito clássico de quem exerce a função de presidente: muito particular, baseado na confrontação constante e na geração de atritos institucionais. Isso acaba tendo ressonância seja no Brasil, seja fora. O Brasil sempre se caracterizou por ser um país obediente às normas internacionais, que era capaz de ser parte da engenharia de grandes consensos, de ser um indutor de processos de paz. O que se percebe aqui fora em relação ao Brasil é que se abriu mão de todo esse capital diplomático. Abre-se mão do capital político acumulado que dava ao Brasil a primazia de atuar em diversas frentes no sistema internacional. A leitura que se faz é de que o Brasil está fora do compasso de sua normalidade histórica.
Existe, na sua opinião, uma "marca Brasil"? Que atributos contribuem para a construção da imagem do Brasil no Exterior?
Os países têm marca. Parte característica da "marca Brasil" é a de um povo solidário, acolhedor, alegre. Há Estados que se notabilizam por sua organização social e eficiência de gestão, países que projetam sua marca a partir de seu desenvolvimento tecnológico, outros a partir de sua capacidade esportiva ou sua infraestrutura militar. O Brasil sempre se caracterizou, modulou sua marca, a partir de uma percepção de um país pacífico, que é capaz de resolver as controvérsias e contenciosos de forma negociada. É um país que evitava atritos e era proponente da consciliação. Essa marca de país pacífico e conciliador não existe mais. O olhar para o Brasil não é mais assim. A primeira pergunta que te fazem, aqui em Harvard, é: "O que está acontecendo com o seu país?"
O Brasil é assunto nos corredores da Universidade de Harvard?
Claro, aqui na universidade, de forma geral, indaga-se o que está acontecendo com o Brasil. O país parece que perdeu sua bússola. Não é porque você tem um governo à direita. Na verdade, este não é um governo de direita, é de extrema-direita. Não é porque houve uma mudança governamental. A questão é que as posições do Brasil hoje são totalmente heterodoxas, contrassensuais, contra a lógica. Não conheço, dentro do ciclo universitário, de quem conhece ou se interessa pelo Brasil, ninguém que não esteja espantado. Não conheço ninguém que ache que o que está acontecendo no Brasil é algo dentro da normalidade.
Mesmo quem está em Harvard e acompanha os Estados Unidos fica surpreso? Uma vez que o presidente Jair Bolsonaro se espelha em Donald Trump?
O povo americano está espantado com Trump. Basta olhar as pesquisas. Em vários Estados, ele está tomando uma lavada em relação a Joe Biden. Na Pensilvânia, Estado em que ele venceu a Hillary Clinton por menos de 10 mil votos na eleição anterior, hoje está 10 pontos atrás de Biden. No Arizona, Estado do Mike Pence (vice de Trump), está tecnicamente empatado ou atrás do Biden, Flórida, que é um Estado caracteristicamente republicano, ele está tecnicamente empatado com Biden. Isso reflete o humor e a insatisfação do público americano. Trump está perdendo tração entre os mais idosos, na faixa dos afro-americanos, dos hispano-americanos, entre jovens, entre mulheres. Não é que se espantam, é que aqui os pesos e contrapesos e as instituições são muito fortes. Você não vê Trump atacando a Suprema Corte americana. Você não vê Trump indo a uma manifestação em frente à Casa Branca em meio a uma pandemia de covid-19. Você não vê Trump em frente à Casa Branca onde há faixas propondo o fechamento do Supremo. Bolsonaro procura imitar Trump, e o imita inclusive nos erros e da pior forma possível.
A má gestão da pandemia pode erodir o chamado soft power brasileiro, a capacidade de projeção de poder do país lá fora?
O soft power é basicamente a projeção dos interesses nacionais brasileiros nos tabuleiros internacionais de forma qualificada e diplomaticamente bem desenhada. Hoje, o Brasil não tem um projeto de política externa. Até para você projetar os seus interesses, você precisa ter um projeto. Esse projeto não existe. Hoje, o Brasil encontra-se imobilizado nos principais tabuleiros internacionais, inclusive atacando seus principais parceiros estratégicos no mundo: as duas potências europeias, Franca e Alemanha, a China, seu principal parceiro comercial, a Argentina, que é o principal parceiro geopolítico na América Latina. Não vou nem entrar na temática dos países árabes (houve ameaças de rompimento de contratos comerciais diante da intenção do governo de mudar a embaixada em Israel de Tel-Aviv para Jerusalém) . Há uma degradação do poder brando brasileiro, que sempre foi consubstanciado em suas capacidades de utilizar seu estilo pacificador, propositivo, pragmático e conciliador. Isso é fato.
A pandemia profunda a crise na imagem brasileira?
A pandemia escancarou de uma forma um pouco mais nua e crua as debilidades da política externa brasileira e da capacidade governamental. Qual país do mundo, em meio a uma pandemia de coronavírus, está trocando o ministro da saúde? Diga um país só… Não tem. Então, algo está errado. Qual país categoricamente nega a ciência? Três ou quatro. Normalmente Estados totalitários, que adotam o mesmo discurso negacionista quanto aos efeitos do problema. Em parte, Trump paga um alto preço porque tentou minimizar isso. E tentou propor soluções não comprovadas cientificamente. Isso feriu de morte sua popularidade e hoje o país tem 30 milhões de desempregados e mais de 100 mil mortes. Então, não foi muito auspicioso. A crise da covid-19 escancarou as debilidades do governo que já eram conhecidas, mas não vistas com essa ótica tão primitiva.
Essa imagem internacional pode ser reconstruída ou os danos são irreversíveis?
Se o governo seguir com essa mesma tônica, a tendência é de que haja uma deterioração grave, mais grave ainda, da imagem do Brasil no mundo. Se essa dinâmica de adoção de políticas públicas e de confrontação persistir, a tendência é de que se agrave. Se é irrecuperável ou não, vai depender de quem estiver à frente do governo futuro e do trabalho que será feito. Acho que o trabalho no futuro é reversível, porém vai custar muito caro ao Brasil: em tempo, em recursos, em reconquistar a confiança de importantes parceiros. Não vai ser algo que se recupere da noite para o dia. Tem de haver um trabalho por trás e isso precisa se provar na prática. Podemos recuperar? É possível, mas não será fácil e não será no curto prazo.