Era aniversário, mas não havia música, nem decoração ou comida. Entre os convidados, "três vivos e quatro mortos". Para sua singular festa de 70 anos, Francisco Alberto Rheingantz Silveira convidou a esposa, Maria Rejane, 68, o casal de amigos Zenaide e Bartolomeu Coutinho— "os vivos" — e os compositores Ludwig van Beethoven (1770-1827), Franz Peter Schubert (1797-1828), Johannes Brahms (1833-1897) e Johann Strauss (1825-1899) — "os mortos".
Se a lista de convivas falecidos soa estranha, inusitado também foi o local dos festejos, no último dia 18: o Cemitério Central de Viena (Zentralfriedhof), uma área gigantesca na capital austríaca, com 2,5 quilômetros quadrados, 300 mil sepulturas e criptas e mais de 3 milhões de "habitantes". Inaugurado em 1874, trata-se do segundo maior cemitério da Europa, com áreas para diversos credos religiosos e um dos mais visitados do mundo pelos turistas por causa de seus "moradores" ilustres.
Mas voltemos ao aniversariante: por que Francisco, professor de matemática aposentado após 28 anos atuando na PUCRS, optou por uma comemoração que, à primeira vista, parece excêntrica? É que ele tem três grandes paixões: maratona, música e viagens, não necessariamente nessa ordem. Numa só ida a Viena, uniu as três. Sem contar, é claro, a presença de sua companheira há 45 anos e dos amigos de décadas.
Se muitos leitores e ex-alunos não ligaram o nome à pessoa, talvez seja preciso dizer que Francisco é conhecido em Porto Alegre como Chico Maratona. É que, entre 1988 e 2009, correu 75 maratonas (42,195 km cada) e 12 ultramaratonas (acima da distância da maratona, em geral mais de 50km), um total de 87 (guarde esse número!). Ele ouviu falar em maratona pela primeira vez nos Jogos Olímpicos de 1984, mesmo ano em que quebrou o quadril jogando futebol. Correria a sua primeira quatro anos depois na capital gaúcha — e acabaria completando 21 delas na cidade onde nasceu, 12 no Exterior e o restante em várias cidades brasileiras, com registros oficiais dos organizadores.
E agora é preciso fazer a conexão com a música. A avó de Francisco era pianista, ela o ensinou a tocar e é dela o piano de 1905 que preenche a sala da casa na zona sul de Porto Alegre. Além da faculdade de Matemática na UFRGS e do mestrado em Computação na PUCRS, fez "70%" do curso de Música na federal, onde se orgulha de ter sido aluno de Bruno Kiefer (1923-1987), professor e compositor nascido em Baden-Baden, na Alemanha, radicado em Porto Alegre e que dá nome a um dos teatros da Casa de Cultura Mario Quintana.
Apaixonado por Beethoven e por outros clássicos — respeita muito Bach, "o matemático da música" —, Francisco se diz um pianista "iniciante-intermediário", que toca de preferência música popular, mas a forma como mostra o piano da avó e executa Merceditas revelam que é mais do que isso. Esse gosto pela música e pelo instrumento não virou profissão, mas está sempre presente. Sabe por que 87 maratonas?
É que Chico Maratona queria completar 88 delas, tantas quantas as teclas de um piano. Chegou a fazer sete em um ano. Faltou uma mísera. A última vez que se inscreveu em uma ultramaratona, na qual correria 79 quilômetros, foi em Davos, na Suíça. Acabou desclassificado ao cruzar os 40 quilômetros um minuto após o tempo mínimo exigido no dificílimo trajeto alpino.
As consequências daquele acidente de 1984 cobravam a conta, sem contar outros problemas de saúde, e ele foi aconselhado a reduzir o ritmo. Sem frustrações nem engambelações — houve quem sugerisse que completasse a 88ª caminhando, por exemplo. Adora corrida, considera o esporte mais democrático de todos — "Corro ao lado do gari e do desembargador", diz. Seguiu a dica de diminuir, não completará seu projeto, mas não deixa por menos. No dia 19, um dia após a festa de 70 anos, completou 7 quilômetros da Corrida do Urso Polar, em um parque de Viena. E depois, usando a capital austríaca como ponto central, visitou cidades de diversos países fronteiriços à Áustria. Assim uniu seu trio de paixões.
A das viagens, que ainda não detalhei, tem particularidades. A primeira grande aconteceria em um Fusca "azul calcinha", emprestado pelo pai, logo após o casamento, com o presente dos convidados transformado em recursos para o trajeto de Porto Alegre ao Rio Grande do Norte, dormindo em barraca e hotel barato. Depois, em trailers nos quais o casal transportava os filhos Rafael, hoje com 43 anos, e Majane, 42, em roteiros pelo Estado, pelo Brasil ou nos países vizinhos — só ao Uruguai foram 23 vezes. À Europa começaram a viajar em 2006. Sempre conciliando com alguma corrida — a esposa não corre, mas acompanha, às vezes caminha. Também às vezes, combinavam a viagem com colegas da PUCRS, mas com programas independentes.
Chico, aposentado desde 2015, e Maria Rejane, que também encerrou a carreira de professora, criam minuciosamente seus roteiros— o caderninho e a pasta, a que chamam de "monografia", com documentos, tickets e informações, valeriam uma coluna inteira. Viajam usando milhas e escolhem hotéis confortáveis, mas baratos, próximos de estações de trem, para usar seu meio de transporte favorito. Ela fotografa, ele filma — são mais de 400 vídeos em um canal privado. Conhecem, até agora, 18 países. A alguns, voltam e voltam, como Áustria e Alemanha. E Uruguai. E Argentina. E projetam ir de novo a Ushuaia, na Argentina, agora de carro, quando Maria Rejane completar 70, em 2024. Paixões...
E se você acha que esse texto tem muitos números e datas, não esqueça que Francisco — ou professor Chico ou Chico Maratona — é da área. Estão na cabeça ou metodicamente anotados.
Ele, que detesta aniversários e só havia comemorado outras duas vezes na vida — aos 30 e aos 50 —, não parece nem um pouco arrependido da festa de agora, aos pés de seus ídolos no cemitério de Viena no dia 18 de seus 70 anos. Fazia frio naquela manhã de sábado e estavam quase sozinhos no Zentralfriedhof. Francisco e seus três convidados "vivos" custaram a encontrar os túmulos dos quatro convidados "mortos". Carregavam um espumante comprado na loja da casa de Beethoven em Baden bei Wien, lugar onde o músico compôs boa parte da 9ª Sinfonia. Abriram a bebida, celebraram e se emocionaram. Paixões...
Se você quiser imitar Chico Maratona...
Principais maratonas do mundo
- Boston (EUA)
- Nova York (EUA)
- Berlim (Alemanha)
- Chicago (EUA)
- Londres (Reino Unido)
- Tóquio (Japão)
Preste atenção
* A 38ª Maratona Internacional de Porto Alegre está agendada para os dias 3 e 4 de junho. Informações em maratonadeportoalegre.com.br
Cemitérios famosos no mundo
- Cemitério Nacional de Arlington (Whashington D.C., EUA)
- Highgate (Londres, Reino Unido)
- Père Lachaise (Paris, França)
- Recoleta (Buenos Aires, Argentina)
- São João Batista (Rio de Janeiro)
- Zentralfriedhof (Viena, Áustria)