O jornalista Henrique Ternus colabora com a colunista Rosane de Oliveira, titular deste espaço.
Responsável na Justiça Eleitoral pelos processos envolvendo propagandas de rádio, televisão e internet, o juiz José Ricardo de Bem Sanhudo teve trabalho intenso nos últimos dias do segundo turno. Com tom de campanha cada vez mais elevado, a disputa entre Sebastião Melo (MDB) e Maria do Rosário (PT) saiu do âmbito das urnas e tomou espaço no campo judicial.
À coluna, Sanhudo avaliou seu trabalho durante o pleito, o tom da campanha e os desafios da Justiça Eleitoral.
Qual a sua avaliação sobre a campanha eleitoral de 2024?
O mais marcante foi a diferença do ambiente de campanha e do próprio tom das campanhas entre o primeiro e o segundo turno. Na última semana, o número de processos com pedidos cautelares, de urgência, liminares, foi bastante grande. Nós tivemos no total, mais de 70 processos referentes a irregularidades formais, a grande maioria tinha relação com o teor das propagandas. Isso diz respeito diretamente com o tom das campanhas. Eu, desde o início, procurei deixar muito claro para todos os envolvidos no processo eleitoral que não cabe à Justiça Eleitoral definir o tom da campanha de cada um. O que nos cabe na função de juízes eleitorais é apenas a análise posterior daquilo que é veiculado. Nós temos uma norma extremamente minuciosa, muito detalhada, com previsão de praticamente todas as hipóteses possíveis de irregularidades na campanha, tanto nos meios de comunicação tradicionais, o rádio e a TV, como em especial na regulamentação da campanha através da internet. A avaliação que fica é que, lamentavelmente, e digo isso na condição muito mais de eleitor e de cidadão do que de juiz, eu achei que o tom do final de campanha destoou muito do tom do primeiro turno.
Quais foram as mudanças que observou do primeiro para o segundo turno?
Desde o início da campanha surgiram propagandas de ambos os lados referentes a questões envolvendo atos de corrupção do passado. E os processos, as representações, as reclamações eram quase todas vinculadas a esse tema. Eu procurei fixar um critério de que esses temas não poderiam ser interditados do debate eleitoral, e estabeleci um balizamento no sentido de que os temas poderiam ser abordados pelos candidatos, isso faz parte da democracia e do processo eleitoral, mas com o cuidado de evitar imputações pessoais e diretas contra os candidatos, quaisquer que fossem, sem que houvesse provas disso. Isso teve que ser analisado caso a caso, se havia ou não algum teor ofensivo à honra ou à imagem dos candidatos, a referência a algum fato sabidamente inverídico, ou uma descontextualização buscando confundir ou iludir o eleitor. Isso, durante um bom tempo, me parece que foi sendo levado em conta pelos partidos, mas aí, posteriormente, o tom da campanha mudou. No final da campanha, de fato, a situação ficou mais tensa e o número de intervenções judiciais precisou ser um pouco maior.
No final da campanha, de fato, a situação ficou mais tensa e o número de intervenções judiciais precisou ser um pouco maior.
JOSÉ RICARDO DE BEM SANHUDO
Juiz da 161ª zona eleitoral
O tom da campanha ficou dentro das suas expectativas?
Considerando o porte da eleição, o grande eleitorado que nós temos aqui em Porto Alegre, eu sinceramente no primeiro turno imaginei que, em termos de volume de processos, fosse maior do que acabou sendo. Mas no segundo turno acabou se confirmando o que de fato era esperado. A gente tinha uma expectativa que talvez fosse otimista, em função de que eram dois candidatos muito experientes, com vida pública já de muitas décadas, pessoas extremamente respeitadas no âmbito político, tanto de um lado quanto de outro. Refletindo agora e comparando com o que nós tivemos em outros lugares do país, talvez isso tenha sido um dos fatores para que aqui, a não ser nesses últimos momentos da campanha, a situação não tenha sido tão agressiva. Mas esse aumento, esse tensionamento da última semana é esperado em todo o processo eleitoral, é normal isso. A única coisa que ficou um pouco fora da expectativa foi uma concentração nos últimos dias, eu imaginei que isso fosse ocorrer mais ao longo de todo o segundo turno.
Como o volume de processos afeta o trabalho da Justiça Eleitoral?
Nós, juízes eleitorais, temos que estar preparados para isso porque se vierem 10 processos a gente atua nos 10, se vierem cem nós temos que atuar nos cem. O protagonismo não é nosso, o protagonismo é dado pelo tom das campanhas, e pela decisão que as campanhas eventualmente tomem de judicializar ou não algumas questões. Há conteúdos que podem ter sido muito semelhantes aos que foram produzidos aqui em Porto Alegre, em outras cidades, e que não tiveram manifestações da Justiça porque os adversários não judicializaram. Na verdade são as coordenações de campanha que estão analisando a repercussão dos conteúdos que publicam, e tomam a decisão de judicializar aquilo que eles entendem que seja interessante. Para nós cabe apenas decidir o que vem. Se vier pouca coisa, melhor. Se vier muita coisa, a gente faz o que tem que fazer. Não temos escolha, isso está fora do nosso alcance.
Conseguiu acompanhar outras eleições ou manteve o foco na Capital?
Fiquei absolutamente focado na nossa campanha, salvo uma ou outra manchete nacional, especialmente na eleição de São Paulo. Quando se iniciou a campanha eleitoral, lá em 16 de agosto, eu tomei a decisão pessoal de não assistir a nenhum programa de propaganda eleitoral gratuita no rádio e na televisão e não seguir nenhuma rede social de nenhum dos candidatos. Justamente para não me influenciar pelo tom que fosse dado por uma ou por outra campanha, examinei exclusivamente aquelas peças que vieram para o meu exame nos processos. Foi uma decisão pessoal que eu tomei e não me arrependo. Acho que foi importante para examinar com bastante serenidade todos os processos que vieram ao meu conhecimento.
O que houve de diferente nesta eleição para as anteriores?
Esse cenário nacional de polarização se reflete em toda a sociedade, e não teria como não se refletir na campanha. Então, eu acho que a campanha eleitoral não é um episódio isolado. É um episódio que faz parte da vida nacional. E esse cenário de polarização que começa a se acentuar, talvez, há 10 anos, evidentemente desemboca com mais força no momento das campanhas eleitorais. Mas diria que a maior diferença seja na propaganda na internet, também como uma consequência da rapidíssima evolução dos recursos digitais e tecnológicos, da própria inteligência artificial. Isso me parece que foi um diferencial relativamente às outras campanhas eleitorais. Se a gente projetar isso em termos de sociedade, é um diferencial em relação a todos os ramos de atividade. Não teria como ser diferente na eleição. Mas acho que, se eu pudesse apontar uma diferença, seria a utilização da propaganda digital, o incremento da utilização da propaganda digital e a resposta institucional que o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) deu com a sua regulamentação.
O que mudou com a propaganda na internet?
A resolução do TSE relativa à propaganda na internet é de última geração, ela é excelente, é uma norma extremamente atual. Ela foi feita com base na experiência do TSE, nas eleições de 2018, de 2020, de 2022. Isso foi gerando uma jurisprudência consolidada. Todas as questões relativas às discussões de segurança do processo eleitoral veio para dentro dessa resolução de uma forma extremamente técnica, detalhada, minuciosa, de forma que não havia praticamente espaço para que os partidos e os candidatos pudessem eventualmente alegar que não sabiam que tal ou qual conduta não poderia ser feita, que tal ou qual recurso não poderia ser utilizado, em que termos, em que quantidade, de que forma todos esses recursos digitais poderiam ser utilizados na campanha. Em relação à inteligência artificial, essa normatização é uma das únicas, se não a única existente, no ordenamento jurídico brasileiro que aborda de forma muito clara e muito específica a utilização desse recurso. Acho que esse foi, talvez, o maior desafio que nós tivemos e essa normatização nos ajudou muito. No início da campanha era um pouco assustador, quando a gente olhava para as possibilidades que poderiam surgir na utilização dessas tecnologias, mas graças à qualidade dessa norma, ao detalhamento dessa norma, facilitou demais a ação dos juízes eleitorais.
A inteligência artificial generativa, capaz de produzir deepfakes de altíssima qualidade, é uma situação que preocupa. Mas eu tenho certeza absoluta que o TSE está absolutamente atento para isso.
Quais são os principais desafios para os próximos pleitos?
Daqui a dois anos, a gente não sabe nem o que vai ter disponível para as partes, porque o avanço tecnológico é muito grande. A inteligência artificial generativa, capaz de produzir deepfakes de altíssima qualidade e que, por isso, tem altíssimo grau de periculosidade no sentido de confundir ou iludir o eleitor, é uma situação que preocupa. Certamente quem utilizar isso de forma inescrupulosa vai tentar obter vantagens indevidas através da utilização da tecnologia, como também acontece em todos os setores da sociedade. Os golpes que nós temos visto, hoje são a grande maioria praticados por essa via e é provável que isso migre para o processo eleitoral. A internet abre uma porta muito grande pela qual podem entrar bem-intencionados ou mal-intencionados, e a gente tem que estar muito atento para isso. Mas eu tenho certeza absoluta que o TSE está absolutamente atento para isso, e, na medida em que as tecnologias forem avançando, eu tenho certeza que as nossas normas vão procurar acompanhar, de modo a nos conceder condições de enfrentar isso de forma bem adequada.