No momento em que o Brasil ultrapassa a marca de 500 mil mortes pelo coronavírus é impossível naturalizar a tragédia, como querem os que negam a gravidade da pandemia. Não foi uma fatalidade, mas a combinação de erros e omissões que espicharam o tempo de duração do pesadelo em que os brasileiros estão mergulhados desde março de 2020. Enquanto outros países começam a abandonar a máscara, porque controlaram a pandemia, ainda temos em média dois mil mortos por dia, contaminações em alta e hospitais lotados. O que será o amanhã? Os especialistas não têm uma resposta precisa, porque o futuro depende do ritmo de vacinação e da continuidade de cuidados básicos que boa parte da população abandonou.
A CPI da Covid pode não conseguir a punição de eventuais culpados, mas até aqui já serviu para traçar um roteiro dos equívocos que fermentaram a tragédia coletiva. O primeiro e pai de todos os outros foi a falta de uma estratégia nacional de combate à pandemia. Logo de saída, o presidente Jair Bolsonaro ignorou as recomendações de seu ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, e tentou anular as decisões dos governadores que tentavam conter a disseminação do vírus com medidas restritivas. Foi preciso que o Supremo Tribunal Federal garantisse autonomia aos governadores e prefeitos para que, na falta de uma estratégia nacional, fizessem o que a ciência recomendava.
Bolsonaro preferiu confiar nas previsões furadas do deputado federal Osmar Terra (MDB), espécie de ministro paralelo, adepto da teoria de que o caminho seria a imunidade de rebanho pela contaminação em massa. A linha do tempo dos áudios e vídeos divulgados por Terra nas redes sociais e nos grupos de WhatsApp indica que ele pautou Bolsonaro com seus palpites de que o coronavírus mataria menos do que a H1N1.
No dia 18 de março de 2020, Terra disse à TV Câmara: “Esta epidemia, na minha opinião, vai ser menor e com muito menos dano para a população do que a do H1N1, por exemplo”. No dia 22 de março, Bolsonaro repetiu o chute: “O número de pessoas que morreu no ano passado de H1N1 foi de 800 pessoas. A previsão é não chegar a essa quantidade de óbitos no tocante ao coronavírus”.
Como em um jogral, Terra continuou no dia 23 de março: “No H1N1 nós não fechamos um restaurante. Eu estava falando do presidente Lula, era o governo dele, ninguém, pregou quarentena, e foi muito mais grave, matou muito mais gente do que o coronavírus vai matar”. Seguiram-se previsões de que o pico seria em abril, depois maio, junho e que a epidemia acabaria em 14 semanas — que não chegaram nunca.
Semana após semana, Terra dizia uma coisa e Bolsonaro repetia. A explicação para a resistência de Bolsonaro em apostar na vacina, como fizeram outros governos, pode estar nos conselhos de Terra. Em julho, Terra assegurou numa entrevista que a pandemia estava indo para o fim e terminaria sem a vacina. Essa previsão, de que quando as vacinas chegassem a epidemia já teria terminado, foi feita outras vezes, em áudio e vídeo.
São fartas as gravações do presidente desdenhando da vacina. Bolsonaro só se rendeu quando percebeu que o governador de São Paulo, João Doria, potencial adversário na eleição de 2022, estava ganhando terreno por conta da vacina do Butantan, que no início o governo federal não queria comprar. Quantas vidas foram perdidas pelo atraso na contratação das vacinas? Nunca se saberá ao certo, mas foi a vacina que fez cair a mortalidade nos outros países e reduziu o número de óbitos entre idosos, que foram os primeiros a se imunizar no Brasil.
O desrespeito ao uso de máscara, o estímulo às aglomerações, a falta de uma campanha consistente de esclarecimento e a aposta na cloroquina e em outras drogas de ineficácia comprovada no tratamento da covid-19 podem explicar, em parte, por que o Brasil se mantém há tanto em um patamar elevado de óbitos e não vê sinais de arrefecimento. Por teimosia e convicção ideológica, Bolsonaro é o único entre os chefes de Estado e de governo de uma grande nação a não se vacinar.
Aliás
Nenhuma palavra do presidente Jair Bolsonaro no dia 19 de junho em solidariedade às famílias enlutadas. Não chega a ser surpresa, já que em outros momentos ele tratou como “mimimi” os lamentos pelas mortes, disse que não era coveiros e que o medo da covid era “coisa de maricas”.
Palpite infeliz
Se não tinha uma palavra de solidariedade para as famílias que perderam parentes para a covid-19, o ministro das Comunicações, Fábio Faria, deveria ter ficado quieto. Mas não.
Antes que se chegasse aos 500 mil, e sabendo que marca seria batida no sábado, Faria usou o Twitter para uma manifestação infeliz: “Em breve vcs verão políticos, artistas e jornalistas 'lamentando' o número de 500 mil mortos. Nunca os verão comemorar os 86 milhões de doses aplicadas ou os 18 milhões de curados, porque o tom é sempre o do ‘quanto pior, melhor'. Infelizmente, eles torcem pelo vírus".
O ministro esqueceu que todos os dias se comemora cada dose de vacina aplicada. E que “comemorar os 18 milhões de curados” é como não lamentar quando cai um avião, porque todos os outros que decolaram chegaram ao destino. Cada vida perdida importa.