Os quase quatro dias de indefinição até que Joe Biden fosse considerado matematicamente eleito presidente dos Estados Unidos despertaram lembranças de um tempo arquivado na memória de quem cobriu eleições no Brasil antes da urna eletrônica. As rádios competiam para anunciar o primeiro voto, como se aquilo fizesse alguma diferença. Canoas costumava ser a primeira cidade a iniciar a apuração, o que também não tinha qualquer importância. Nas eleições mais apertadas, demoravam-se dias para conhecer o vencedor.
Candidatos a vereador e deputado sofriam por dias e noites até que se definissem os ocupantes das cadeiras e, não raro, alguém que já era considerado eleito perdia a vaga na última hora com a entrada dos votos da “zona da mata” de um adversário. Zona da mata era uma expressão muito popular naqueles tempos. Designava o reduto eleitoral de um candidato e podia reverter um resultado desfavorável ou, simplesmente, servir de consolo a quem estava perdendo. Na maioria das vezes era uma miragem, mas todo candidato depositava sua esperança na entrada dos votos da “zona da mata”, que podia fazer sentido no Nordeste, mas no Rio Grande do Sul era uma abstração.
Como a Justiça Eleitoral demorava demais para anunciar o resultado oficial, as empresas de comunicação montavam centrais paralelas com dezenas de pessoas e anunciavam, “voto a voto” o andamento da apuração. Quem contava os votos eram os escrutinadores oficiais, mas o pulo do gato dos veículos era a agilidade em transmitir os dados para uma central assim que saía o boletim de urna, o popular B.U. Pequenos partidos cediam vagas de fiscal para que as empresas tivessem um olheiro em cada mesa apuradora e corresse a repassar os dados naqueles tempos de comunicações precárias.
Nos anos 1980, quando comecei a cobrir eleições, as calculadoras e os computadores com capacidade reduzida de processamento funcionavam dia e noite para ganhar a corrida do TRE e anunciar o resultado com a maior antecedência possível e com a menor margem de erro possível.
Nas cédulas de papel, o eleitor marcava um “x” no candidato a prefeito, governador, senador e, depois de 1989, presidente. Para deputado e vereador era preciso escrever o nome ou número do candidato e aí residia uma fonte de dúvida para a junta apuradora: os garranchos muitas vezes incompreensíveis tinham de ser decifrados.
Se fosse impossível depreender a intenção do eleitor, o voto era declarado nulo. Da mesma forma, se a pessoa marcasse o “x” em mais de um quadradinho. Rezava a lenda que muitos votos brancos eram preenchidos na hora por escrutinadores sem escrúpulos e que na hora de transferir os dados para o mapa, a “mão grande “ alterava para favorecer seu candidato. Era o que se chamava de “mapismo”, uma das fraudes mais comuns nas eleições de antes da urna eletrônica.
Aliás, foi exatamente para coibir fraudes que se criou a urna eletrônica, um sistema informatizado e cercado de medidas de segurança, mas contestado pelos negacionistas do uso da tecnologia na eleição, curiosamente os mesmos que, em seu complexo de vira-lata, dizem que se a urna eletrônica fosse boa os Estados Unidos a utilizariam.
Mesmo agora, que estamos assistindo a uma apuração interminável, os adversários da urna eletrônica aceitam seu sucesso e insistem com o voto impresso, um anacronismo como comprar um videocassete, na definição do presidente do TSE, ministro Luís Roberto Barroso. Ou, para usar uma comoração com o sistema bancário, querer voltar a usar cheque no momento em que as transferências eletrônicas estão sendo modernizadas com com o “pix”.