Bendita seja a lei da transparência, que permite aos cidadãos de cada cidade do Brasil conferir quem recebeu o auxílio emergencial e identificar as falcatruas. De todos os quadrantes do Rio Grande do Sul pipocam histórias de pessoas abastadas que se candidataram e receberam os R$ 600 e de outras, sem renda, que foram barradas por um sistema falho e não têm nem a quem reclamar. A maior falha, no entanto, não é do sistema. É do caráter das pessoas que pediram o dinheiro mesmo sabendo que não tinham direito, na ideia de que é preciso levar vantagem em tudo.
O ministro da Cidadania, Onyx Lorenzoni, se orgulha de ter montado em tempo recorde um sistema que identificou milhões de brasileiros “invisíveis”. É meritório ter socorrido pessoas que de uma hora para a outra ficaram sem renda, mas milhões de beneficiários do auxílio emergencial não têm nada de invisíveis.
São cidadãos que se exibem nas redes sociais em viagens, festas e eventos inacessíveis à maioria dos brasileiros. Moram em casas confortáveis, recebem mesada, moram no Exterior ou desfilam de nariz empinado em seus carrões (importados, inclusive) pelas cidades do Interior. Militam no Facebook contra a corrupção, mas não hesitam em pegar R$ 600 que deveriam ser destinados aos verdadeiramente necessitados.
O caso da moça de Espumoso, que ficou quase duas semanas sob censura prévia, não é nem o mais escandaloso dos reportados pelos jornalistas Giovani Grizotti e Humberto Trezzi e dos que ainda estão em investigação. Tornou-se simbólico pela reação da jovem, que, em vez de justificar o recebimento do dinheiro, ao ser questionada por Grizotti, correu à Justiça para impedir a divulgação.
A censura afronta a Constituição. É papel do jornalismo iluminar as zonas de sombra, incluindo os cantos onde se escondem cidadãos que tratam o dinheiro público como se não fosse de ninguém.
Na longa lista de “vulneráveis” que identificaram no auxílio emergencial uma forma de tirar vantagem da pandemia, embolsando um dinheiro ao qual não tinham direito, estão parentes de prefeitos de vereadores e de secretários municipais, filhos de grandes produtores rurais, com carro de luxo na garagem, ex-mulheres que recebem pensão generosa e servidores públicos municipais, estaduais e federais. Até uma primeira-dama e um secretário municipal já foram identificados entre os contemplados. Isso explica por que o valor desembolsado pelo governo ficou tão acima do previsto.
O dinheiro se espalhou como penas ao vento e será impossível fazer com que todos os que o receberam indevidamente devolvam o valor aos cofres públicos. Parte retornou quando os beneficiários se deram conta de que ficariam expostos pela divulgação no site do governo federal.
Falhas no sistema foram identificadas pela Controladoria-Geral e pelo Tribunal de Contas da União com simples cruzamento de bancos de dados, coisa que deveria ter sido feita desde o início. Não se entende por que, desde logo, o Ministério da Cidadania não cruzou os CPFs dos solicitantes com os dados da Receita Federal, do sistema de foragidos da Justiça ou mesmo do cadastro de servidores da União.
Em defesa do ministro Onyx Lorenzoni pode-se dizer que adotou o princípio da boa-fé, não imaginando que pessoas sem escrúpulos se aproveitariam de um momento de crise sanitária para levar vantagem. A realidade mostrou que a ganância não tem limites e que o Brasil não é para amadores.
Aliás
A burocracia, tantas vezes criticada por atrapalhar a vida do cidadão bem-intencionado, precisa ser usada para impedir que o dinheiro público escorra pelo ralo da corrupção, seja pequena, média ou grande.