Na farra do auxílio emergencial, tem dono de vinícola recebendo o dinheiro destinado pelo governo a trabalhadores necessitados. Caso do empresário Divanildo Kloss, de Nova Roma do Sul, na Serra, que recebeu R$ 600. Ele mora em uma casa confortável e a família é dona de um prédio no centro da cidade. Por telefone, Kloss diz que se inscreveu por brincadeira e que vai devolver o dinheiro.
— Não quis receber, devolvi, só fiz para brincar. Era só para saber se ia passar ou não, entendeu? Jamais ia querer (o benefício). Pensei: capaz, nunca vai passar, porque tenho certos bens ali. Se foi pra minha conta, vou devolver não preciso disso e nem quero.
Informado de que o filho também está na lista, respondeu:
— Isso tu tem de ligar para ele. Se ele tá recebendo, não tô sabendo, não sabia. Se ele se inscreveu, ele vai devolver, sem estresse nenhum. Está errado, muito errado.
Numa rede social, Emanuel Kloss, filho de Divanildo, costuma registrar sua passagem por restaurantes, além de postar fotos de praias e esportes radicais. Numa imagem do ano passado, recebe as chaves de um caminhão zero quilômetro. Ele não quis se pronunciar à reportagem.
A lista de beneficiados pelo auxílio emergencial que têm boa situação econômica é ampla em Nova Roma do Sul. Inclui uma dentista, Aline Scapinello, filha de um conhecido político da cidade. Ela já viajou para cidades como Angra dos Reis, Arraial do Cabo e Rio de Janeiro, como revelam suas redes sociais. Tentamos falar com a dentista. Ela atendeu, mas ficou muda ao telefone.
Marido de magistrada recebeu auxílio
O descontrole faz com até marido de juíza receba o auxílio de R$ 600 (embora a renda familiar deles some mais do que o teto estabelecido pelo benefício). Sócio de uma fábrica de placas credenciada no Detran em Encantado e casado com uma magistrada que atua na Região Metropolitana, Pedro Giordani admite que tem moto, casa na praia e barco. E que se inscreveu para receber o auxílio. Mas garante que não vai sacar o dinheiro.
— Vou devolver isso aí. É que a fábrica de placas parou 15 dias. Mas quem te informou sobre meus bens? Bom, não vem ao caso. Isso é assunto encerrado, vou devolver.
"Me enquadro no requisito", diz arquiteto
Um conhecido arquiteto de Veranópolis, Gerson Luiz Capponi, recebeu R$ 600 do auxílio emergencial em maio. Ele é responsável pelo design de grandes prédios residenciais naquele município, circula em carro esportivo e mora em apartamento próprio. Questionado pela reportagem, garante que tem direito ao benefício.
— É só tu ler as regras. Tenho esse apartamento onde moro, mas o rendimento familiar deve ser de no máximo R$ 3.135 por mês. Como sou sozinho, me enquadro no requisito — interpreta.
Questionado se sua renda anual é inferior a R$ 28 mil, como preconiza a regra, Capponi disse que tinha compromissos e desligou o telefone.
Outro morador de Veranópolis também interpretou que poderia receber o benefício. O ex-vereador Rudimar Caglioni, sócio de uma imobiliária e corretor de imóveis, recebeu R$ 1,2 mil de auxílio emergencial em abril e maio. Ele acreditou que os corretores teriam direito, já que ficaram vários meses sem vender imóveis. Ele anunciou no Facebook que devolveu o dinheiro.
— Na minha terra todo mundo tirou: dentista, médico, empresários. Achamos que era uma ajuda para empresas. Não teve má fé da minha parte, tanto que já devolvi os R$ 1,2 mil e postei isso no Facebook.
A reportagem perguntou a Caglioni se ele não desconfiou que o benefício é para gente carente e também se não reparou na exigência de renda familiar de até R$ 3 mil. O corretor assegura que não, que apenas viu uma brecha para conseguir um fôlego financeiro nos meses de pandemia. Entendeu que a ajuda também poderia ser a empresas, não apenas a pessoas.
Algumas pessoas, depois de alertadas ou por vergonha, desistiram do benefício. Em Veranópolis, a verba para auxílios emergenciais pagos, que foi de R$ 1,5 milhão em abril, caiu para R$ 237 mil em maio.
Servidora da prefeitura devolveu dinheiro
Em Nova Pádua, a servidora pública municipal Keyla Marin também recebeu R$ 1,2 mil de auxílio governamental em abril e maio, mas devolveu tudo semana passada, após muitas críticas nas redes sociais. Ela assegura que não sabia estar impedida de usar o benefício, por ser funcionária da prefeitura. Agentes públicos de qualquer esfera não podem ser contemplados com o auxílio emergencial, ressalta o superintendente da Controladoria-Geral da União (CGU) no Rio Grande do Sul, Carlos Alberto Rambo. Isso consta no Decreto 10.316/2020 que explica: "é vetado o auxílio ao agente público, inclusive o ocupante de cargo temporário ou função temporária ou de cargo em comissão de livre nomeação e exoneração e o titular de mandato eletivo".
Keyla diz que pensou em assegurar algum dinheiro, já que exerce cargo em comissão e pode perder o emprego, nesse ano eleitoral.
— Depois vi que tinha gente que precisava mais e devolvi. O peso da consciência foi mais forte do que qualquer julgamento.
De uma maneira geral, conforme a especificidade de cada caso, são crimes.
DELEGADO JOSÉ DORNELLES
Superintendente da Polícia Federal no Rio Grande do Sul
Com relação a microempresários, a CGU salienta que só os que têm remuneração muito baixa são alvo da ajuda governamental.
— O espírito do benefício é atender quem realmente precisa e não consegue se manter. Não é para alguém que tenha renda consistente e acima dos R$ 28 mil anuais — pontua Rambo.
Em São Marcos, também na Serra, foram as filhas do prefeito Evandro Kuwer (MDB) que, após receberem auxílio emergencial de R$ 600 cada uma, decidiram devolver o benefício. O prefeito disse à repórter Lizie Antonello, do jornal Pioneiro, que as duas (Karen e Kátia) estão desempregadas e seus maridos ganham pouco. Logo, entende Kuwer, elas se encaixam nos critérios do programa.
Fraude, aliás, é outra ponta do novelo de irregularidades no auxílio emergencial. Começam a proliferar nas delegacias policiais queixas de que estelionatários tiram o benefício em nome de cidadãos que sequer sabem que isso aconteceu. Reportagem de GaúchaZH mostrou que pelo menos cem casos desse tipo ocorreram no Vale do Sinos desde maio.
O superintendente da Polícia Federal no Rio Grande do Sul, delegado José Dornelles, promete agir contra fraudadores, usando para isso de cruzamento de dados e ferramentas cibernéticas.
— De uma maneira geral, os crimes praticados são invasão de dispositivo informático furto mediante fraude, modificação ou alteração não autorizada de sistema de informações, estelionato majorado, e inserção de dados falsos em sistema de informações, conforme especificidades de cada caso — resume Dornelles.
Como denunciar
O canal para registro de denúncias de fraudes é o sistema Fala.Br, disponível neste link ou pelos telefones 121 ou 0800— 707 —2003.
Critérios para receber o auxílio emergencial
- Ter mais de 18 anos de idade; salvo no caso de mães adolescentes
- Não ter emprego formal ativo
- Não receber benefícios pagos pelo Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS), como aposentadoria, pensão ou Benefício de Prestação Continuada (BPC)
- Não ser beneficiário do seguro desemprego, seguro defeso ou de programa de transferência de renda federal, com exceção do Bolsa Família
- Estar em família com renda mensal por pessoa de até meio salário mínimo (R$ 522,50) ou com renda mensal total de até três salários mínimos (R$ 3.135)
- Em 2018, não ter recebido rendimentos tributáveis acima de R$ 28.559,70, ou seja, em 2019 não precisou declarar imposto de renda
- Ser microempreendedor individual, contribuinte individual do Regime Geral de Previdência Social ou trabalhador informal, mesmo que desempregado
O que diz o Ministério da Cidadania
O Ministério da Cidadania, responsável pela gestão do auxílio emergencial, afirma trabalhar diuturnamente para a evolução do maior benefício já criado, em âmbito nacional, para assistir a população mais vulnerável. Os recursos destinados para essa ação já passam dos R$ 150 bilhões. A tarefa está longe de ser fácil, diz o ministro Onix Lorenzoni, pelo escasso tempo para construir, implantar e revisar de forma constante cada processo de trabalho.
O auxílio emergencial conta com um modelo de governança que embute parcerias de controle e fiscalização com a CGU e o TCU. Isso gera trilhas de auditoria que são usadas para identificar, tomar ações de recuperação e retroalimentar com informações para a melhoria na análise de cada lote de solicitações do auxílio emergencial. As informações inseridas no site e no aplicativo do auxílio emergencial são cruzadas com vários bancos de dados oficiais de documentação e situação econômica e social. Além de responder por crimes, os que burlam a lei estão sujeitos a ressarcir os valores recebidos.
RBS TV censurada durante 11 dias
Por 11 dias, a RBS TV esteve impedida de publicar reportagem sobre o auxílio emergencial sacado pela comerciante Ana Paula Pagnussatti Brocco, de Espumoso, Noroeste. Ela ingressou na Justiça e conseguiu, em duas instâncias, censura prévia sobre notícia que questiona se ela preenche os critérios para receber o benefício.
O juiz Daniel da Silva Luz, da comarca de Espumoso, concedeu liminar impedindo que o nome e a imagem dela fossem “publicados” e “vinculados” em reportagem. Foi determinada multa de R$ 50 mil por divulgação. A RBS TV recorreu da liminar, com o argumento de que a Constituição brasileira proíbe a censura prévia. A liminar que censurava foi mantida pela desembargadora Maria Isabel de Azevedo Souza, da 19ª Câmara Cível do TJ. A censura foi derrubada, dia 26, em despacho da própria desembargadora Maria Isabel, que reconsiderou sua decisão inicial. A magistrada considerou que não há uma “situação excepcional” a justificar uma intervenção prévia à liberdade de imprensa.