Assumi que, precisando conciliar o trabalho com as tarefas domésticas, não tenho fôlego para escrever um relato diário e despretensioso sobre a rotina da quarentena. Minha prioridade é a coluna Política+ e o Gaúcha Atualidade, e estabeleci que escreverei quando puder, sem perder a noção dos dias.
Foi hoje, no 45º dia da minha quarentena particular que ultrapassamos mais uma dessas barreiras que antes pareciam reservadas a países distantes: são mais de 6 mil mortos no Brasil, somando-se aos dados do Ministério da Saúde os óbitos informados pelas secretarias estaduais depois da divulgação do boletim diário. Não estão nessa conta os milhares de casos de mortes por síndrome respiratória aguda grave nem os que dão o último suspiro em casa, desassistidos.
O Brasil inteiro sabe que a subnotificação é uma realidade, mas o presidente da República segue na toada de que governadores e prefeitos estão inflando os óbitos, como se alguém ganhasse alguma coisa com o aumento do número de mortes. É a mesma deformação mental que faz com que seus áulicos naveguem na fantasia de que existe uma torcida do vírus ou que os jornalistas têm prazer em noticiar mortes. São pessoas que precisariam de tratamento psiquiátrico, mas, como não se reconhecem doentes, desnudam-se nas entrevistas ao pé da mangueira, nas lives e nas redes sociais.
Jair Bolsonaro disse que “tem gente potencializando o número de óbitos” no mesmo dia em que se negou a cumprir a ordem judicial de tornar público o resultado do teste para coronavírus, que diz ter dado negativo. Mais: disse que vai se sentir violentado se tiver de divulgar, por via judicial, o laudo do exame. Seria tão simples mostrar e acabar com a polêmica, mas a insistência sugere que o presidente mentiu.
Hoje mesmo, em entrevista à Rádio Guaíba, ele disse que talvez tenha tido o coronavírus, lá atrás, mas não sentiu nada. Junte-se A + B + C e tem-se um esboço de narrativa para o caso de aparecer a prova de que o teste deu positivo. Como para provar que a fruta não cai longe do pé, o quarto filho, Jair Renan, também desdenhou do coronavírus, essa gripezinha que já matou mais de 6 mil brasileiros. O ministro da Saúde, Nelson Teich, admite que a covid-19 poderá matar mais de mil por dia nas próximas semanas e que não é hora de flexibilizar.
— Sim, e daí? — perguntará o presidente, relembrando que é Messias mas não pode fazer nada.
Daí que esse mesmo presidente que agora quer culpar governadores e prefeitos fez campanha contra o distanciamento social, estimulou a rebeldia e participou de aglomerações para dar o exemplo. Péssimo exemplo.
Também foi hoje, no 45º dia de isolamento, que o governador Eduardo Leite detalhou como vai funcionar o distanciamento controlado. Não tinha nem terminado de falar e vários prefeitos da Região Metropolitana já anunciavam a abertura do comércio neste início de maio. A Grande Porto Alegre começa com bandeira laranja, que permite aos prefeitos flexibilizar as restrições.
Tudo o que escrevi até aqui é público e se menciono é porque preciso contextualizar a síntese destes dias estranhamente ensolarados, porque já estamos na metade do outono e paira sobre o planeta a sombra da pandemia.
Hoje nada me emocionou mais do que o texto da modelo e apresentadora Fernanda Lima, publicado em seu perfil no Instagram. “Reage, pai”, implora Fernanda, para contar o drama do pai, Cleomar Lima, internado há um mês com a maldita covid-19.
O texto da Fernanda é, ao mesmo tempo, grito e sussurro. Cleomar é um sujeito boa praça, que meia Porto Alegre conhece como o pai da Fernanda Lima. Ela fala do pai com tanta delicadeza que minha vontade é entrar no coro e dizer “reage, Cleomar, para estar forte quando a Maria, sua netinha, der os primeiros passos, e comemorar o aniversário dos gêmeos”.
Não há como chegar ao fim do texto de Fernanda Lima sem pensar na dor de todas as famílias anônimas, dilaceradas pelo vírus, como os jovens de Venâncio Aires que perderam o pai e a mãe para essa maldita gripezinha que os insanos dizem que mata menos do que “tombo”.