A sexta-feira (24) foi o mais longo dos dias desta quarentena. Tão longo que adormeci enquanto tentava organizar um relato que sintetizasse com precisão o dia em que o ministro Sergio Moro rompeu os laços com o governo pelo qual largou a toga e uma bem-sucedida carreira de 23 anos como magistrado.
Saiu chutando o balde, para surpresa de quem imaginava uma retirada discreta e silenciosa. Fez acusações tão graves que, logo em seguida, publiquei em GaúchaZH um texto dizendo que estava aberto o caminho para o impeachment ou a renúncia do presidente Jair Bolsonaro.
Foi também o dia em que Bolsonaro fez um pronunciamento inesquecível. Misturou tantos elementos desconexos que não seria exagero dizer que parecia ter usado um gerador de lero-lero para se defender das acusações de Moro.
Ao meio-dia, servi uma marmita com a comida sobrada da véspera e comi sobre o teclado porque a vida digital tem pressa. Enforquei a sesta e isso explica porque, depois de fechar a coluna, o sono me venceu.
Como não podia deixar passar em branco o 39° dia de quarentena, optei, antes tarde do que nunca, por reproduzir aqui o registro que fiz em tempo real, pelo Twitter, das manifestações de Moro, pela manhã, e de Bolsonaro, à tarde, acompanhado dos ministros.
Pela ordem em que foram publicados:
11:10 - Sexta-feira, 24 de abril: o dia em que o governo de Jair Bolsonaro perdeu, por incapacidade do presidente, o ministro que era um dos selos de credibilidade em meio a um grupo de desvairados.
11:12 - Símbolo do combate à corrupção, Moro entrou no governo com a promessa de que teria carta branca, mas começou a ser fritado há mais de um ano. A gota d'água foi a saída de Maurício Valeixo da direção geral da Polícia Federal.
11:13 - Moro começa a entrevista em que anunciará a demissão falando de sua carreira e elogiando a independência de Maurício Valeixo. Detalha a conversa com Bolsonaro, quando foi convidado, e a promessa de carta branca para montar a equipe.
11:15 - Ouvi direito? Moro disse que no governo do PT a Polícia Federal tinha autonomia. É verdade, como atesta a longa permanência de Leandro Daiello no comando, mas não deixa de ser surpreendente que o reconhecimento venha de Moro.
11:16 - Moro diz que sua única condição para assumir o ministério da Justiça foi que, se algo lhe acontecesse, a família não ficasse desamparada. E que seu compromisso era com o combate à corrupção e à criminalidade violenta.
11:17- Moro, normalmente frio, está visivelmente emocionado. Quando falou que temia pelo futuro da família, embargou a voz. O temor era de ser assassinado, não de ser demitido.
11:21 - Moro faz balanço de sua atuação no combate à criminalidade. O tom da despedida não deixa dúvida: ele quer mostrar que não foi por inoperância que caiu.
11:24 - Moro diz que conseguiu resultados expressivos no combate à criminalidade. Cita números que não necessariamente são fruto do trabalho do governo federal, mas entra na contabilidade da despedida.
11:24 - Bolsa, que já vinha mal, despenca. Piscou aqui na minha tela algo como -6%. Confere, produção?
11:26 - Moro entra no episódio da saída de Maurício Valeixo. Diz que Valeixo queria sair e que os dois concordaram, mas que a ideia era uma substituição técnica. Abre parêntese para dizer que sempre deu autonomia para sua equipe.
11:27 - Moro confirma o que já se sabia desde o ano passado: que a insistência para trocar o comando da PF é antiga. Confirma também que Bolsonaro pressionou pela troca de comando na PF do Rio (quando caiu Ricardo Saadi).
11:29 - Moro diz que PFV tem outros delegados tão competentes quanto Valeixo. O problema é que Bolsonaro não apontou causa para a demissão de Valeixo e não respeitou a promessa de autonomia para escolher a equipe.
11:30 - Moro volta a registrar que interferência como essa não ocorreu nem na época da Lava-Jato. E diz que a pressão do governo agora não é para trocar apenas o diretor-geral, mas outros superintendentes regionais, sem justificativa aceitável.
11:32 - Moro revela que ontem conversou com o presidente e alertou que intervenção política teria consequências negativas. Bolsonaro reconheceu que era sim interferência política e recusou sua sugestão para uma substituição técnica. O nome era o do atual secretário executivo.
11:34 - O que Moro está fazendo é o que no interior do RS se chama de "chutar o pau da barraca". Entrega, nos detalhes, o que Bolsonaro quer da Polícia Federal: acesso a relatórios, por exemplo, quebrando a autonomia da instituição.
11:35 - "O grande problema não é quem entra, mas por que alguém entra", diz Moro. E diz que um dos nomes cogitados "passou mais tempo no Congresso do que na corporação".
11:37 - Depois dessa entrevista de Sergio Moro, já não duvido que na minha já longa carreira de jornalista eu venha a cobrir o terceiro processo de impeachment em três décadas.
11:38 - Moro diz que foco deveria ser o combate ao coronavírus, mas "não podia deixar de lado meu compromisso com o estado democrático de direito". Confirma que Valeixo não pediu exoneração (como consta no decreto) e que soube da demissão pelo Diário Oficial.
11:41 - Textualmente, Moro diz que a forma como demitiu Valeixo é a prova de que Bolsonaro o quer fora do cargo. Que em respeito a sua biografia não podia a aceitar a intervenção que Bolsonaro quer fazer na PF.
11:42 - Moro diz que a substituição de delegados, pretendida pelo governo, põe em risco o combate à corrupção em geral e à Lava-Jato em particular. Forte, muito mais forte do que se especulava, a entrevista do agora ex-ministro.
11:43 - Às 11h42min, Moro anunciou que vai encaminhar o pedido de demissão.
11:45 - Moro diz que abandonou os 23 anos de magistratura, mas que quando assumiu o ministério sabia que era um caminho sem volta. E que vai descansar um pouco e, mais adiante, procurar emprego.
11:47 - Sob aplausos dos servidores do Ministério da Justiça, Moro deixa o cargo com um certo ar de alívio. Esboça um sorriso de canto de boca. Não é o sorriso escancarado de Mandetta, mas é o mesmo ar de quem se livrou de um peso imenso.
12:23 - Terremoto no Planalto. Ou seria tsunami? (Link para texto Saída de Moro enfraquece Bolsonaro e ampliada instabilidade)
13:30 - Tsunami no Planalto: Moro cai atirando e dá munição para impeachment de Bolsonaro (link para texto)
Até a covid-19 fica em segundo plano. Só se fala da saída de Moro. Nas redes sociais, começa a campanha de desmoralização do agora ex-ministro. Participo de videoconferência com colegas queridos, que tenho a impressão de não ver há meses, enquanto espero o pronunciamento do presidente Bolsonaro. Não há clima para amenidades, porque temos três crises simultâneas em andamento: sanitária, econômica e política.
Volto ao Twitter porque o presidente vai começar a falar:
17:01 - Bolsonaro chega acompanhado de ministros. Começa pronunciamento atacando Sergio Moro, dizendo que cantou a pedra pela manhã, em reunião com parlamentares. Que hoje o Brasil ia conhecer quem está a favor do Brasil e quem só pensa no ego.
17:03 - Bolsonaro relata episódio em que em um aeroporto Moro o ignorou à época em que era candidato. Diz que ficou magoado, mas depois Moro pediu desculpas.
17:03 - Do grupo de ministros, Paulo Guedes é o único com máscara. Todos, sem exceção, com cara de enterro.
17:04 - Vice-presidente Hamilton Mourão está no grupo. Discretamente.
17:05 - Bolsonaro diz que antes da eleição recebeu uma sugestão para conversar com Moro, mas declinou. Que só aceitou receber Moro depois da eleição. Diz que Moro não participou da campanha dele. "Nem sei em quem ele votou no primeiro turno".
17:06 - Bolsonaro diz que Moro foi avisado de que a autonomia era relativa. Que exerceria o poder de veto nas indicações para cargos, mas acatou a maioria, incluindo o diretor-geral da PF, Maurício Valeixo.
17:07 - Bolsonaro queima Moro. É declaração de guerra contra o ministro que saiu chutando o balde pela manhã.
17:09 - Enquanto Bolsonaro fala, a orquestra de panelas toca aqui pelos arredores do Rio Branco/Moinhos de Vento.
17:10 - Em resposta à afirmação de Moro de que tem uma biografia a zelar, Bolsonaro diz que tem "um Brasil a zelar".
17:12 - "Oras bolas... Se eu posso trocar o ministro, por que não posso trocar o diretor da Polícia Federal?", pergunta Bolsonaro, insistindo que não fez interferência política.
17:14 - Bolsonaro revela mágoa porque a PF mostrou mais interesse em descobrir quem matou Marielle do que em desvendar a tentativa de assassinato que ele sofreu em Juiz de Fora.
17:15 - Ministro Onyx Lorenzoni é um dos que aparentam maior abatimento. Nelson Teich está igual a ontem. Parece naturalmente desanimado.
17:17 - "Desliguei o aquecedor da piscina olímpica do Alvorada e mudei o cardápio", diz Bolsonaro a título de exemplo de austeridade.
17:19 - Enquanto isso, a Procuradoria-Geral da República pede abertura de inquérito para investigar afirmações de Sergio Moro. Augusto Aras não faz mais do que a obrigação.
17:19- Esse discurso é antológico. Precisa ser guardado na íntegra.
17:20 - Bolsonaro diz que quer ver a PF agindo na sua plenitude. E que quem pediu para sair foi Maurício Valeixo, porque estava cansado.
17:21 - "Eu sempre abri o coração para ele (Moro), mas acho que ele nem sempre abriu o coração pra mim". Bolsonaro magoado.
17:22 - Bolsonaro diz que nunca cobrou informações privilegiadas da PF. Que queria informações para melhor agir. E que precisa implorar por informações.
17:24 - Bolsonaro diz que avisou Moro de que demitira Valeixo. E que, "pelo que tudo indicava", Valeixo queria sair. Moro relutou e falou, segundo o presidente: "Mas o nome tem que ser o meu". Vamos conversar. Por que tem de ser o seu e não o meu?
17:25 - Bolsonaro diz que sugeriu a Moro fazer um sorteio para escolher o diretor-geral da PF. Eu não acredito que ouvi isso. Devo estar com mais sono do que o ministro da Saúde.
17:27 - Bolsonaro diz que Moro, em conversa privada, ontem, disse que aceitaria a mudança do diretor da PF em novembro, depois que fosse indicado ministro do Supremo Tribunal Federal. Conversa sem testemunhas. Será a versão de um contra o outro.
17:30 - Para desqualificar a Pl, Bolsonaro cita a história de que o filho Zero 4, o Renan, "de 20, 21 anos" namorou a filha do miliciano acusado de matar Mariele. E agora cita o Queiroz, a mãe da Michele. Discurso parece produto do programa conhecido por "gerador de lero-lero".
17:34 - Agora o problema de Moro é ser desarmamentista. De não apoiar o direito dos caçadores e atiradores de comprar mais munição.
17:35 - Rodrigo Maia perdeu o posto de inimigo número 1 de Bolsonaro. Agora é Sergio Moro, o que tentou "colocar uma cunha" entre ele e o povo.
17:36 - Bolsonaro resgata o primeiro embate com Moro, a indicação de Ilona Szabó para um conselho do qual era seria suplente.
17:37 - Reparem na expressão dos ministros: FOTO DO PRESIDENTE COM OS MINISTROS
17:39 - Na foto está também o filho Eduardo Bolsonaro. Só falta nomear o Zero Três ministro, depois da fracassada tentativa de fazê-lo embaixador nos Estados Unidos.
17:40 - Depois de um longo e confuso improviso, em que sobrou até elogiou para Abraham Werintraub, Bolsonaro avisa que vai ler um texto de três páginas.
17:41 - “Estou decepcionado e surpreso", diz Bolsonaro sobre Moro. Reclama da coletiva e nega ter tentado interferir na Polícia Federal. Guedes olha o relógio pela segunda vez.
17:42 - "Desculpe, senhor ministro, o senhor não vai me chamar de mentiroso. Não existe acusação mais grave para um homem como eu, militar, cristão e presidente, do que ser acusado de mentiroso".
17:44 - Pena mesmo eu tenho do tradutor de Libras com esse discurso. E da ministra Teresa Cristina, no cantinho esquerda da imagem. Ela parece muito desconfortável.
17:46 - Terminou às 17h44min um dos discursos mais inacreditáveis da história da República.
Na correria para resumir o discurso confuso do presidente, acabei pulando a frase mais emblemática: “A Polícia Federal de Moro mais se preocupou com a Marielle do que com o seu chefe supremo”. E outra: “Será que tenho de implorar a Sergio Moro que apure quem mandou matar Jair Bolsonaro?”.
No Jornal Nacional, William Bonner apresentou print da conversa em que a deputada Carla Zambelli sugere a Moro aceitar a demissão de Valeixo. Em troca, ela faria lobby para Bolsonaro indicá-lo ministro do Supremo Tribunal Federal. “Prezada, não estou à venda”, responde Moro, que foi padrinho de casamento de Zambelli.
No dia em que só se falou da queda de Moro, o sistema público do Rio de Janeiro esgotou a capacidade das UTIs. A situação também é crítica em Manaus, Fortaleza, Belém e São Paulo. O dia fechou com mais 357 mortes por covid-19, elevando o total oficial no Brasil para 3.704.