Quando o coronavírus parecia um problema exclusivo da China, que nunca chegaria a este país tropical, as pessoas ainda tinham tempo para discutir irrelevâncias, como se fazia sentido chamar de quarentena um isolamento de 14 dias. Foi esse o tempo que os brasileiros trazidos de Wuhan em dois aviões da FAB ficaram isolados em Anápolis (GO), até que se tivesse a certeza de que nenhum estava contaminado. Quando finalmente deixaram o isolamento, o Brasil respirou aliviado com a certeza de que estávamos livres.
Todos os que lidam com informação cansaram de explicar aos que insistiam na pergunta sobre as origens da expressão quarentena. Eis que neste sábado (25) completei a quarentena clássica: 40 dias de distanciamento social. No início, até caminhava no parque, porque a orientação dos médicos sempre foi de que uma caminhada solitária não estava proibida. Depois desisti, por medo da patrulha. As pessoas andam muito raivosas e eu nunca fui de brigar na rua. Passei a caminhar apenas no pátio do próprio edifício, como se estivéssemos em lockdown.
Esses 40 dias são contraditórios. De um lado, passaram muito rápido, porque o trabalho aumentou e não tive tempo nem mesmo para o ócio criativo ou para a leitura de ficção. Tampouco assisti às lives de artistas, deputados, pensadores, celebridades e subcelebridades. De outro, é como se tivesse passado um século, tal a reviravolta que esse vírus provocou no planeta.
Nestes 40 dias, o presidente Jair Bolsonaro empurrou para fora de seu governo os dois ministros mais populares, Luiz Henrique Mandetta e Sergio Moro. O czar da Economia, Paulo Guedes, exibe sinais de desconforto diante da perspectiva de explosão dos gastos públicos. Mais de 4 mil pessoas já morreram no Brasil pela covid-19. Hospitais estão à beira do colapso em várias capitais - felizmente, Porto Alegre não é uma delas, porque aqui o isolamento social conseguiu evitar o avanço descontrolado do vírus. Milhares perderam o emprego. Milhões ficaram sem renda e se inscreveram para uma ajuda emergencial de R$ 600 do governo, que para boa parte ainda não chegou. Aumentou barbaramente a violência doméstica e os feminicídios.
Nas redes sociais, a sensação é de que o confinamento tornou mais agressivas as pessoas que já se alimentavam de ódio. As bem-humoradas se divertem compartilhando memes. As racionais, tentam propor debates civilizados, mas logo a prosa descamba para a baixaria, porque dialogar está a cada dia mais difícil.
A falta do que fazer transforma irrelevâncias em polêmicas. Quer um exemplo? Na sexta-feira, caiu Moro, fazendo graves acusações a Bolsonaro, mas a internet conseguiu transformar em assunto os sapatos (ou a falta de) do ministro Paulo Guedes. Na manifestação de Bolsonaro, Guedes era, entre os homens, o único sem paletó e sem gravata. Também era o único a usar máscara. Estava com um sapato tão leve que, nas imagens da TV, parecia estar apenas de meias. Meias furadas, pelo que viralizou. Ampliando as fotos, notava-se que era um mocassim, levíssimo.
Eu já estava pensando em comprar um pela internet quando li que o tal sapato custa mais de R$ 400. Não, obrigada. Vou continuar trabalhando de havaianas ou com as meias de Pilates, antiderrapantes, porque conforto é tudo na quarentena. Vide o desconforto da ministra Damares Alves, durante a fala se Bolsonaro. Ela justificou depois que o problema era o salto alto. Quando voltar ao trabalho, não sei como vou me reacostumar com o sapato e com a vista do Dilúvio, já que aqui o horizonte é amplo.
Apesar de trabalhar a três passos da geladeira e de estar mais sedentária do que nunca, emagreci. Pouco, é verdade, mas o suficiente para concluir que valeu a pena resistir à tentação. O trabalho doméstico me exaspera. Ainda que as máquinas façam as tarefas mais desagradáveis, lavar roupa e louça, é preciso limpar o chão, tirar pó dos móveis, limpar banheiro, arrumar a cama. E estar atenta ao que acontece no mundo. Às vezes cozinho ou limpo com uma bolsinha à tiracolo para poder ouvir a Rádio Gaúcha no aplicativo enquanto driblo a minha falta de vocação para dona de casa.