Lá se vão quatro semanas desde que me instalei neste canto da sala transformado em redação particular, de frente para uma estante de livros, com o rádio às costas e a TV na diagonal. Daqui participo de reuniões, converso com fontes, interajo com leitores, dou atenção à família, troco mensagens com amigos próximos e distantes e escrevo, escrevo, escrevo. Já não sinto tanta falta da tela grande do desktop, sinal de que, precisando, a gente se adapta ao terreno árido, ao notebook e aos fones de ouvido.
Nas horas vagas, faço serviços domésticos, a mais perfeita tradução do mito de Sísifo. Quando parece que está chegando ao fim, volta e começa tudo de novo.
A relação com o tempo tornou-se estranha depois da pandemia. Como naqueles filmes em que a passagem dos dias é marcada pela alternância de cenas do amanhecer e do entardecer, acordo, abro a janela e olho para o Leste. Ao fim da tarde, vejo o dia morrer para os lados da Zona Sul e, quando me dou conta, lá se foi mais uma semana de confinamento. Quatro semanas passaram voando e, no entanto, tudo aconteceu nestes 29 dias.
Quando comecei a trabalhar em casa, o Brasil não tinha nenhuma morte por coronavírus. A situação se complicava na Itália e na Espanha. Nos Estados Unidos, Donald Trump resistia em em recomendar o isolamento social. Hoje, o país mais rico do mundo bateu seu próprio recorde: foram 2.228 mortes em 24 horas, totalizando 25.757. Itália tem 21 mil, Espanha 18 mil e França, 15,7 mil.
No Brasil de quatro semanas atrás, contabilizávamos os casos confirmados e os suspeitos. Naquele primeiro dia (17 de março) seria confirmada a primeira morte, em São Paulo. Quatro semanas depois, o total no Brasil já passa de 1.500. Nas últimas 24 horas, foram 204. Pelas autoridades sanitárias sabemos que o número real é bem maior, porque tem muita gente sendo enterrada sem sair o resultado do exame. Só em São Paulo, são 16 mil testes à espera de resultado.
O mundo entrou em colapso. São raros os aviões no céu do Brasil. Com maior ou menor rigidez, o isolamento é global. Países que inicialmente resistiram em adotar medidas restritivas, fecham-se agora para evitar uma catástrofe.
Todos os dias, o Jornal Nacional faz um recorrido pelo mundo, mapeando o avanço do coronavírus. Quando passa pela Europa, lembro de um livro de Marçal Aquino: Eu ouviria as piores notícias dos seus lindos lábios. Eu ouviria o anúncio do fim do mundo na voz do repórter Rodrigo Carvalho, porque ele humaniza as piores notícias e fala com uma suavidade que faz falta nestes dias de treva. Não é só a voz. Rodrigo tem bom texto e até más notícias têm de ser bem escritas para não machucarem tanto.
Qual é a imagem mais marcante destas quatro semanas de confinamento? Escolha difícil. Poderia ser a de Nova York vazia, de Paris sem turistas, de médicos e enfermeiros aplaudindo o paciente que tem alta, de Andrea Bocelli cantando sozinho na catedral de Milão. Pela direção de arte, fico com o Papa Francisco na imensidão da Praça de São Pedro sem fieis.