No meu passaporte consta que nasci em Espumoso. Tecnicamente, está correto. Campos Borges era o terceiro distrito de Espumoso até a emancipação, em 1988. Da cidade em que estudei em 1975 guardo as melhores lembranças e sempre que passo por lá me encanto com a vista, especialmente da que se tem perto da Linha Seca. Hoje Espumoso registrou o primeiro caso de covid-19, o que nem seria notícia, porque o homem de 54 anos que testou positivo passa bem e é só mais um entre milhares de infectados.
Eu não deveria me impressionar, porque vivo na cidade que tem o maior número de contaminados. Se essa confirmação tornou meu dia mais amargo foi pela sensação de que o vírus chegou a um território meio sagrado, como se tivesse invadido a minha adolescência distante.
Porque cultivo laços com a minha cidade, cedo fiquei sabendo que havia um clima de comoção. Por interesse mais pessoal do que jornalístico, quis saber mais. Então recebi o vídeo de uma manifestação do prefeito e a narrativa me inquietou. Porque o prefeito é o mesmo que na semana passada entrou na Justiça contra o decreto do governador Eduardo Leite, querendo reabrir o comércio. O argumento era de que a cidade não tinha nenhum caso. Agora tem. O Ministério Público se mobilizou e o desembargador Francisco Moesch negou a liminar.
Agora o prefeito está indignado. No vídeo, relata que, mesmo depois de ter em mãos o resultado positivo do teste, o homem circulou pela cidade. Foi a uma oficina mecânica, passou pelo banco, esteve na cooperativa e até compareceu a um velório. O prefeito estuda processá-lo porque acha que colocou em risco a vida dos 15 mil habitantes. Na cidade, o temor é de que o vírus tenha se espalhado, porque ninguém da família fez quarentena. O prefeito relatou aglomerações, falou de um jogo clandestino de futebol, soltou o verbo contra a irresponsabilidade. Passou um sermão na comunidade e ameaçou decretar toque de recolher, se as pessoas não respeitarem o distanciamento social.
O primeiro caso positivo de covid-19 em Espumoso foi o fato mais significativo de uma segunda-feira em que todos acordamos imaginando que o presidente demitiria o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, depois da entrevista em que em o confrontou no Fantástico de domingo. Mandetta não caiu, mas passou o dia longe dos holofotes. À noite, soube-se que o presidente passou mal enquanto caminhava no gramado do Alvorada, mas, ao que tudo indica, já está bem.
Faltou-me ânimo para escrever o diário no sábado. Queria apenas descansar. No domingo, quando a coluna já estava fechada, veio a entrevista de Mandetta. Sobre ela escrevi que o ministro parecia estar forçando a demissão. Tenho cada vez mais a impressão de que Mandetta está por um fio.
É uma postura nazista essa de desprezar os velhos e os que têm algum problema de saúde.
No Twitter, postei um desabafo: “Quando alguém diz ‘ah, mas 75% dos mortos eram do grupo de risco’ eu sinto náusea. Porque revela um desprezo repugnante pelas pessoas com mais de 60 anos ou que têm algum tipo de doença, como se a morte delas não tivesse qualquer importância. Gente desalmada, xô.”.
Há dias me incomoda essa visão de que os idosos são descartáveis ou de que ter diabetes, asma ou qualquer outra doença tratável torna aceitável a morte pela covid-19. É uma postura nazista essa de desprezar os velhos e os que têm algum problema de saúde. Será que essas pessoas nasceram de chocadeira? Não têm pai, mãe, avô, avó?
Ainda me choco com a agressividade de uns e outros nas redes sociais. Pessoas que já eram desrespeitosas antes da quarentena ficaram mais bestializadas no confinamento, presas a teorias conspiratórias alimentadas por cientistas de almanaque.
Na sexta-feira, tínhamos 1.056 mortos no Brasil. Três dias depois, são 1.328 no último boletim oficial. O presidente diz que o vírus está indo embora. O ministro da Saúde prevê que maio e junho ainda serão meses críticos.
Aos que chegaram até aqui, minha sugestão de livro para passar a quarentena é O Tempo Entre Costuras, da espanhola Maria Dueñas.