A entrevista do ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta ao Fantástico, da Rede Globo, teve diretas e indiretas para o presidente Jair Bolsonaro e escancarou o confronto de posições entre os dois. Sem meias palavras, Mandetta reclamou da dubiedade entre a orientação do Ministério da Saúde para que os brasileiros respeitem o isolamento social e as atitudes do presidente. Disse esperar que o governo federal possa ter "uma fala única" em relação ao combate ao coronavírus.
— O país não sabe se escuta o ministro ou o presidente — reclamou.
O ministro, no caso, é ele, defensor do isolamento social como forma de conter o avanço do coronavírus. O presidente é Bolsonaro, que insiste desrespeitar a orientação do Ministério da Saúde e subestima a gravidade da pandemia.
Ontem mesmo, o presidente participou de uma videoconferência com líderes religiosos e deu uma declaração contrária às previsões do ministro de que maio e junho serão meses críticos. Bolsonaro disse que parece que o vírus "está indo embora":
— Temos dois problemas pela frente, lá atrás eu dizia: o vírus e o desemprego. Quarenta dias depois, parece que está começando a ir embora a questão do vírus, mas está chegando e batendo forte o desemprego. Devemos lutar contra essas duas coisas.
É consenso entre os especialistas que, se o número de casos não explodiu, é porque as medidas restritivas estão dando resultado, mas Bolsonaro concluiu, talvez por ouvir mais o deputado Osmar Terra (MDB) do que os técnicos do Ministério da Saúde, que o número de mortes (1.223 no último balanço) é sinal de que o vírus está indo embora, como se o vírus passasse por um país feito enxame de abelhas. O próprio ministério reconhece que esse dado está subestimado, porque os exames de pessoas mortas com sintomas da covid-19 estão represados. Calcula-se que, hoje, já são mais de 2 mil mortos.
Não apenas as palavras ditas de forma direta indicam que Mandetta resolveu confrontar Bolsonaro, que já ameaçou usar a caneta para demiti-lo, mas recuou. Ao citar exemplos de comportamentos inadequados, o ministro disse:
— Quando você vê as pessoas entrando em padaria, entrando em supermercado, fazendo filas uma atrás da outra, encostadas, grudadas, pessoas fazendo piquenique em parque, isso é claramente uma coisa equivocada.
Na sexta-feira, Bolsonaro esteve em uma padaria e tomou café no balcão, contrariando o decreto do governo do Distrito Federal. Em outra cena de desrespeito às regras, esfregou a mão no nariz e logo depois cumprimentou uma mulher.
Na semana passada, a rede de TV CNN divulgou uma conversa do ministro Onyx Lorenzoni com o deputado Terra, na qual os dois falam da demissão de Mandetta em tom de conluio.
Como já disse que não vai se demitir, porque "médico não abandona o paciente", Mandetta pode estar forçando a demissão, cansado de ser desautorizado pelo chefe e farto das intrigas palacianas. Se sair agora, com a popularidade em alta, todo o ônus e um eventual colapso do sistema de saúde, com o consequente aumento do número de mortos, recairá sobre Bolsonaro.
Não por acaso, Mandetta deu a entrevista ao Fantástico de um endereço emblemático: o Palácio das Esmeraldas, em Goiânia, de onde o governador Ronaldo Caiado (DEM) comanda o Estado de Goiás. Médico, Caiado é defensor do isolamento e passou de aliado a desafeto do presidente, quando anunciou que estava rompendo pelo governo.