Na tradição católica em que fui batizada, crismada e catequizada, a Sexta-Feira Santa era um dia sagrado. Crianças, não podíamos subir em árvores nem comer carne. Os adultos não trabalhavam na roça, não ouviam rádio, não limpavam a casa, não lavavam roupa, não faziam nada que não fosse absolutamente essencial. Nem leite se tirava nesse dia santo, porque rezava a lenda que alguém, um dia, foi ordenhar a vaca e do úbere saiu sangue. O Deus amado e temido, que tudo via e tudo anotava, nos queria silenciosos e recolhidos em casa no dia em que Jesus morreu pregado na cruz.
Assim estamos em boa parte do planeta nesta Sexta-Feira Santa, incluindo os países para quem o feriado não tem sentido: silentes e reflexivos na quarentena que sabe Deus quantos dias vai durar. Desde que me tornei jornalista, trabalho em feriados como se fossem dias normais. Já subi o Morro da Cruz, como repórter, acompanhando a procissão e o teatro da crucificação, protagonizado pelo vereador Aldacir Oliboni. Mas nunca tinha trabalhado tanto sem sair de casa.
Hoje foi um pouco diferente, porque mais pesado. Acordei na hora de sempre, participei do Gaúcha Atualidade no cantinho que virou estúdio e não desgrudei do noticiário enquanto tirava o pó, limpava a casa “por onde passa a procissão” e preparava o bacalhau. Não há transição entre os personagens: começo o dia jornalista, às 10h assumo o papel de doméstica, almoço, sesteio um pouquinho e às 14h30min volto a ao trabalho no canto de sala que há vinte e poucos dias é minha redação particular.
Passei a tarde debruçada sobre projeções que indicam um futuro sombrio, como se pode conferir na coluna em GaúchaZH. Tentei abstrair, mas a cena abjeta do dia não me saiu da cabeça: o presidente da República, limpando o nariz com a mão e depois a estendendo para cumprimentar admiradores, em mais uma saída de desafio às regras do isolamento social. Em plena Sexta-Feira Santa? Logo ele que faz política usando nome de Deus, estimulando pessoas a saírem as ruas, mesmo com o risco de contaminação pelo vírus? Isso não pode ser cristão. Também não pode ser cristã a atitude do bispo Silas Malafaia que insistiu em manter aberta sua igreja, colocando em risco a saúde dos fiéis. Foi preciso que a Justiça mandasse fechar as portas para evitar aglomerações.
O homem que governa o país segue exibindo sua irresponsabilidade. Invoca o direito de ir e vir para quebrar as regras do isolamento e acusa os governadores de ditadores, por pedirem às pessoas que fiquem em casa. É estranho ouvir o presidente falar em direito de ir e vir, logo ele, admirador confesso de ditadores e de torturadores.
Será que o presidente ignora que hoje o número de mortos passou de cem mil no mundo. Cem dias desde que a China notificou uma estranha pneumonia. Cem mil mortos espalhados pelo planeta, com a maior concentração nos Estados Unidos, na Itália e na Espanha.
No Brasil, são 1.056 mortes por covid-19. Nos últimos dias, tivemos uma centena de mortos a cada 24 horas. As autoridades sanitárias avisam que vai piorar, mas o presidente não acredita. Está tão obcecado pela cloroquina que trata o medicamento como a cura para a covid-19, mesmo que os médicos insistam em dizer que a substância pode ser usada no tratamento de pacientes contaminados.
Não será surpresa se algum humorista vai inventar o samba ou o rap da cloroquina para jingle de campanha. Já pensaram em algo assim? “Não é a Damares/ nem a Regina/ no meu governo/ a popular é a cloroquina”. Ou então: “Contra esse vírus/ que vem da China/ não para nada/ Dá cloroquina”. Paro aqui, em respeito aos cientistas que estão estudando seriamente os efeitos da cloroquina em pacientes da covid-19.
E para encerrar a semana, uma sugestão de livro que em nada lembra este outono de desesperança, exceto pelo fato de que a Espanha é um dos países mais afetados pelo coronavírus: O Verão Perigoso, de Ernest Hemingway,